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Vidas lokas importam!

A luta antimanicomial para além da sua bolha...

Foto: Dalila Rodrigues | Reprodução Caderno de Notícias
“Sim! Sou muito louca Não vou me curar Já não sou a única Que encontrou a paz Mas louco é quem me diz! E não é feliz! Eu sou feliz!...”

Balada do louco – Rita Lee


“Mais e eu que não tenho nenhum ‘problema de cabeça’ tenho o que a ver com isso?” você pode perguntar...

“...Deve pois só fazer pelo bem da nação Tudo aquilo que for ordenado Para ganhar um fuscão no juízo final E diploma de bem-comportado Você merece Você merece Tudo vai bem, tudo legal Cerveja, samba e amanhã, seu Zé Se acabarem teu carnaval?...”

Comportamento geral- Gonzaguinha


Eu começo te perguntando o que é ser “normal” para você? Os trechos dessas músicas nos ajudam a refletir sobre isso, se você é boa nisso aproveite para repensar sobre a sua saúde mental, isso é uma questão subjetiva, individual, pessoal e intransferível, não existem regras, você faz as suas regras, não terceirize suas escolhas.


Tudo bem que estou chegando atrasada com esse assunto, mas sou das que defendem a ideia de que não precisamos de datas especificas para homenagear, comemorar ou lembrar de algo, principalmente quando se trata de lutas, estas têm que ser vividas diariamente mesmo quando nos falta forças. No último dia 06 de abril de 2021 a reforma psiquiátrica completou 20 anos, assim como no último dia 18 de maio 2021 comemoramos 34 anos da proposta de reformar o sistema psiquiátrico brasileiro. Mas não temos nada para comemorar, pois os retrocessos e ataques do atual desgoverno sobre essas pautas tem sido cada vez mais constantes. Pautas que já foram debatidas há anos, ideias que já tinham caído por terra, mesmo que recentemente. Mas em pleno 2021 no meio desse caos do desgoverno, pandemia a milhão e, eu arrisco dizer que esse é, o período mais sombrio que nossa sociedade passa desde o período escravatura e a gente ainda ter que rediscutir sobre eletrochoque, por exemplo. É algo até cansativo, mas seguimos resistindo incansáveis, não só por nós e pelos que vieram antes e abriram caminhos para que chegássemos nesse nível de debate, mas também pelas que virão, que possam encontrar um mundo um tanto melhor do que ele está hoje. Por uma sociedade sem manicômios e sem prisões!


Para falar dessa pauta nesse ano que marca 20 anos da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial no Brasil, essa luta pela desinstitucionalização do sistema de saúde mental contra o retrocesso da retomada dessa lógica manicomial que restringe ainda mais nossas liberdades individuais, contra a falácia que é essa segunda reforma psiquiátrica, penso que, antes disso, seja importante falar sobre a manicomialização à partir de uma perspectiva antirracista para entender essa lógica antiproibicionista. Porque não tem como desvincular toda essa barbárie que vem acontecendo desde que os colonizadores chegaram nessa terra e começaram a instituir quem estaria dentro dos padrões de normatividade para se conviver em sociedade, com a ocasião da abolição. O que fazer agora para acabar com essa gentalha toda?


A partir daí começa esse projeto de manicomialização do povo preto aqui no Brasil e eu digo isso porque basta olhar imagens de qualquer pátio de manicômio, ou do cárcere ou até do camburão que muito se parece com os navios negreiros, esses espaços têm cor e a gente sabe qual é.


Com o tempo esses espaços se tornaram depósitos de “lixo humano” todos que eram considerados escória da sociedade (gays, imigrantes, “doentes mentais”, prostitutas, militantes políticos…) esse projeto de manicomialização se reedita e se reinventa ao longo do tempo e em cada período usa de diferentes tipos de correntes e formas de dominação. Mas para isso acontecer foram necessárias duas atmosferas que o colonizador bem sabe administrar, o poder e a psicologização, muito disso apoiado inclusive em fundamentos que se dizem científicos. E aí, a partir de concepções racistas, a lei e o remédio desde então passam a ser e continuam sendo ferramentas de controle desse projeto de nação que vinha se formando. Quando surge a lei de repressão a ociosidade, surgem junto mais e mais espaços de opressão.

Paciente durante sessão de eletrochoque no hospital psiquiátrico Juqueri, em Franco da Rocha (SP) - Luiz Carlos Murauskas | reprodução: Folha de S. Paulo
Paciente sendo imobilizada para sessão de eletrochoque no hospital psiquiátrico Juqueri, em Franco da Rocha (SP) - Luiz Carlos Murauskas | reprodução: Folha de S. Paulo

Usavam nossa forma física, formato do crânio e outras coisas do tipo para sugestionar uma inferioridade e/ou periculosidade. No Juqueri mesmo, aqui em São Paulo, crianças e adolescentes eram institucionalizadas na intenção de conter a proliferação do povo preto e manter o mito da raça pura paulistana. Mas apesar desse cenário nós também tivemos grande nomes de pretos que foram figuras importantes e revolucionárias nesse processo.


Juliano Moreira, primeiro a trazer estudos sobre a psicanálise aqui para o Brasil, Lima Barreto, escritor que tinha muito medo de ser institucionalizado e levado num carro de polícia, o que de fato aconteceu. Com isso a gente vê o quanto esse imaginário do preto no camburão já fazia estragos na nossa saúde mental, tem até a música do Rappa que fala: “todo camburão tem um pouco de navio negreiro...” Já eu acredito que tem muito...


Chegamos também em Dona Ivone Lara a nossa rainha do samba que trabalhou ativamente com Nise da Silveira trazendo a música como ferramenta terapêutica potente no trabalho em saúde mental, mas muita gente nem sabe sobre isso, por que será?

” Alegria de viver cantando Companheira desses longos anos Fonte de inspiração tão bela Essa luz sempre a me guiar Da loucura resgatou insanos Pois nas trevas os meus desenganos...”

A Força do Criador – Dona Ivone Lara


Quando a gente olha esse recorte do nosso contexto histórico dá para perceber que não é só sobre o “crioulo doido” e a “negra maluca” como atributos dos enlouquecidos, mas também dos usuários de substâncias psicoativas que nos ajuda a entender o processo proibicionista no Brasil que também tem herança na manicomialização. Daí a gente traz a primeira lei que tentou impedir o uso de drogas no Brasil em 1830, promulgada pela câmara municipal do Rio de Janeiro, a lei do “pito do pango”, por exemplo, já que o consumo era associado aos negros.

“É proibida a venda e o uso do “Pito do Pango”, bem como a conservação dele em casas públicas: os contraventores serão multados, a saber, o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas que dele usarem, em 3 dias de cadeia.”

Teorias eugenistas da época não tinha a intenção de proibir a substância em si, mas, na verdade, buscava marginalizar tudo que tivesse a ver com a cultura afro-diaspórica, o samba, a capoeira, o candomblé atrelando a “vadiagem” à criminalidade, daí a gente percebe que macumbeiro e maconheiro não é só uma coincidência fonética. E assim foi ganhando força essa narrativa da violência manicomial da política antidrogas, próprias desse regime totalitário. Essa política proibicionista intensificou articulações e estratégias voltadas para abstinência sob modelos sanitarista e jurídico moral.


Com a política de guerra drogas surge essa atmosfera de ignorância sobre os reais efeitos das drogas, gerando estigmas de que produziriam propensões criminosas. Mas eu arrisco dizer a partir da minha experiência, enquanto profissional que já trabalhou nos mais diversos espaços e mesmo hoje na clínica, que a droga mais tóxica que existe é a família. É nesse contexto familiar permeado por regras e valores antiquados que acontece o adoecimento de pessoas que, por exemplo, não podem ser elas mesmas, se sentindo na contramão por imposições morais que não fazem o menor sentido. Não aceitam o filho gay, obrigando-o a ir para rua, da mesma forma o incompreendido (rebelde), da mesma forma o filho adolescente que fuma maconha e é internado em comunidade terapêutica como eu mesma já vi, enfim as opressões são infinitas e começam dentro de casa se tornando de fato a porta de entrada para outras drogas.


E a partir desse contexto no Brasil se percebe o surgimento de mais e mais asilos, manicômios, e cárceres, ganhando ainda mais poder, afetando diretamente a população preta pobre e periférica que sempre foram alvo e são os que pagam mais caro com essa guerra insana, e ineficaz, reforçando também esse modelo de privatização da atenção à saúde mental e dos presídios, porque nós sabemos o quanto isso gera lucro para alguns, mas também muita dor e sofrimento para outras. Foi aí que em 1970 que se percebe a urgência dos movimentos para uma reforma psiquiátrica e antimanicomial influenciada pela experiência de Franco Basaglia na Itália e pela problematização da loucura presente no pensamento de Foucault.


Acompanhando uma tendência mundial da ONU a legislação brasileira foi mudando, foi quando em 1971 com a ditadura, repressão a todo vapor junto à preocupação com o “problema do tráfico”, a gente começa a ver surgir termos como traficante e criminoso que passam a definir essa ordem militar policialesca e a ideia de dependência/doença passa a ser tida como vício e o delinquente se torna criminoso. E daí a gente percebe o quanto que a luta antiproibicionista bebe dessa fonte da luta antimanicomial e da mesma forma uma complementa a outra.


Por conta dessa ideia de guerra às drogas, eles vendo que o cárcere não tem dado conta de cumprir com seu "propósito" – e isso é obvio, mas nunca que eles vão admitir – a gente vê a volta dos manicômios para usar, por exemplo, em casos de prisão perpétua que em tese não existe aqui, mas geralmente a pessoa fica presa em hospital de custódia justamente porque a pessoa nunca vai sair dali. Mesmo se ela não tiver nenhuma questão, por exemplo, de sofrimento psíquico, com certeza ali é um ambiente propicio para se desenvolver algum transtorno. Nesse caso se tornando ainda “mais perigoso”, sendo assim, o mais indicado para “proteger” a sociedade é que ele permaneça lá, por isso se torna uma prisão perpétua...


Parece que existe um paradigma nessa questão do encarceramento, onde se prende uma pessoa para “proteger a sociedade”, mas aquele cidadão precisa sofrer por isso, então nesse caso ele perde o direito de ser cidadão. É isso? Qual o sentido dessa ideia de proteção? Porque a gente percebe o recrudescimento do discurso conservador nas campanhas, “atira pra matar”, como ocorre todos os dias nas favelas, como vimos há pouco no massacre do Jacarezinho e o caos social que esse discurso moralista traz.


O quanto parece difícil pensar essa lógica de uma sociedade sem punição, da mesma forma que já foi impossível pensar uma sociedade sem manicômios, mas isso foi provado que é possível com a reforma psiquiátrica, também podemos seguir lutando enquanto abolicionistas penais por uma sociedade sem prisões, já que possibilidades substitutivas a esse modelo atual também já existem.

“...Cada detento uma mãe, uma crença Cada crime uma sentença Cada sentença um motivo, uma história de lágrima Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo Misture bem essa química Pronto, eis um novo detento Lamentos no corredor, na cela, no pátio Ao redor do campo, em todos os cantos Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã Aqui não tem santo...”

Diário de um detento – Racionais MCs


A partir de 2017 para cá, dentre todos os retrocessos que tivemos, também houve a volta da manicomialização, mercantilização e a privatização da saúde mental sob uma perspectiva do higienismo social, desmonte de equipamentos públicos de fato, mais efetivamente em 2020 surge uma portaria do inferno na terra, uma porta que já estava se fechando para o higienismo social. Essa portaria nº 69 de 14 de maio de 2020, orienta internação compulsória da população em situação de rua em comunidades terapêuticas, além de financiar serviços privados e que consequentemente precariza ainda mais os dispositivos da rede do SUS.


Fato é que esses espaços “de recuperação” não estão interessados na reconstrução de laços comunitários, reinserção social, não têm articulação em rede, construção de um projeto terapêutico individualizado contando com a participação ativa do usuário junto a família. Na verdade, é bem o contrário, infelizmente nesses locais ainda ocorrem casos de contenção física, isolamento e restrição de liberdade, obrigando os internos a participarem de atividades de cunho religioso, ou seja, vai totalmente de encontro com a lei da reforma psiquiátrica e isso tem gerado problemas de proporções imensuráveis e eu fui testemunha disso em uma comunidade terapêutica “centro de recuperação” onde trabalhei.


E não só o meu testemunho, também existem diversos estudos que confirmam esses casos de abuso, estudos inclusive do conselho federal de psicologia tem outro estudo também do conselho regional de psicologia de São Paulo entre muitos outros que denunciam as atrocidades que ocorrem nesses locais.


Então a gente percebe que o grande erro foi ter colocado na mão de higienistas e da polícia todo esse poder. Porque isso, antes de qualquer coisa, é uma questão social, de educação, saúde, dentro de uma noção de igualdade de direitos. Com isso, milhares de pessoas são encarceradas, manicomializadas, subjugadas, humilhadas, assassinadas enquanto o Estado permite lucros incalculáveis com esse que é um terreno fértil, inclusive para a corrupção, porque eles lucram até com os corpos mortos que vão para os laboratórios das universidades. Com isso a gente observa o desmonte da proposta do SUS que consistia no enfraquecimento e deslegitimação dessas práticas.


Por que não investir nos equipamentos públicos que já existem? Outro fato é que esse financiamento público vai contra evidências científicas sobre cuidado comunitário em liberdade e a importância da redução de danos. Quando estado financia esse tipo de instituição estão repassando dinheiro que poderia estar sendo usado em serviços mais eficientes e essenciais, além disso ela acaba legitimando, reforçando a lógica desumana que esses espaços utilizam. Outro ponto é que nosso estado é laico e a maioria dessas instituições são de cunho religioso que acabam por desconsiderar a forma particular que cada um expressa sua espiritualidade.


O decreto nº 9.761/2019, com as digitais de Osmar Terra (Planista), que busca promover a abstinência, aumentou os investimentos de 154 milhões para 300 milhões só de 2019 para 2020 ressaltando que esses são investimentos do governo federal, fora os repasses estaduais, municipais e afins, que esses espaços recebem. Esse valor é o que seria repassado para 331 CAPS AD.


No meio disso tudo ainda tem outro agravante porque no meio de todo esse caos que estamos vivendo na saúde em meio ao covid-19 ainda tem a emenda constitucional 95 a chamada PEC do fim do mundo que congela o investimento público de saúde e educação. Uma emenda que chantageia o nosso país. porque o impacto desse desfalque, com certeza, afeta ainda mais esse momento de pandemia, onde esse dinheiro poderia muito bem-estar sendo destinado aos cuidados com a covid, mas, ao contrário disso, segue enchendo os bolsos de instituições desumanas que não trata ninguém. Isso tudo deixou o Brasil com menos capacidade de enfrentar esse contexto de pandemia mundial.


Nós questionamos esse saber psiquiátrico excludente/seletivista que foi construído sobre o silenciamento de pessoas contra o argumento de que “todo louco é perigoso, incapaz e que pode ser preso e torturado como se não fosse gente”. Se não nos deixam sonhar então não deixaremos eles dormirem. Seguiremos lutando na busca por uma sociedade sem manicômios, nem prisões, porque a reforma psiquiátrica nos deu a possibilidade de pensar o inexistente.


Já se foi o tempo em que pensávamos ser impossível uma sociedade sem esses espaços de contenção, foi provado que é possível esse lugar de voz e protagonismo de pessoas que foram silenciadas e privadas de liberdade por séculos, somente por serem diferentes.

Somente 20 anos atrás foi sendo possível criar essa rede de cuidado, ampla, territorializada, horizontal e diversificada, porque temos muitas opções para diferentes contextos e isso NÂO É DESCULPA. O direito à liberdade é o mesmo que o direito à vida e a saúde. Não fosse o SUS, a reforma psiquiátrica não seria possível, salvemos o SUS.


Esse texto é um chamado para que tenhamos essa noção de que a derrubada desses muros em todos os sentidos só foi/é possível pela força da militância, da ação política dos coletivos que compõem essa luta. Precisamos reconhecer nossa força, nossa potência e resistência que é parte de nós. Por mais que eles tentem, é impossível apagar a reforma psiquiátrica porque ela já existe nos afetos que nos atravessam nessa experiência de dignidade, acolhimento, cidadania, de se ver enquanto um no mundo.


Por isso nenhum passo atrás! Manicômios nunca mais. Saúde não se vende, loucura não se prende, para que a gente não esqueça e para que nunca mais aconteça: Acolha, não puna! Sem amor não existe revolução. É nóis por nóis!


“...Crianças crescem nas ruas não confiam em Ninguém escondem nossa cultura referência ninguém O País tá uma merda e a culpa é de quem? A culpa é de quem? Eles roubam do planalto e não pensam em ninguém Manipulam as leis e vêm com um papo furado Tudo que incomoda a eles, eles dizem está errado quem é o marginal?...”

A culpa é de quem? - Planet Hemp


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