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Portugal e a Revolução dos Cravos

Atualizado: 30 de abr. de 2021

A tomada de poder por um grupo de militares colocou fim a um governo que flertava com o fascismo

Havia comigo um ar de incerteza, de dúvida, de sensações misturadas entre boas e outras nem tanto. Um mar de informações tomou conta de mim entre novidades e expectativas quando saímos de casa rumo ao aeroporto. Com meus pais eu iria pela primeira vez entrar em um avião que me levaria a conhecer avós, tios e primos em Portugal. Era um retorno saudoso que meus pais faziam nas férias dos filhos para apresentá-los à família.


Família era o que me soava na cabeça o tempo todo. Viagem, encontros, abraços, união, alegrias, Portugal. Talvez por ironia do destino essa sensação se apresentava de forma muito intensa para mim porque um pouco mais adiante eu iria conhecer algo oposto a isso, uma cena dura que me faria crescer com uma visão diferente de mundo. Direitos de encontros, de fraternidade e respeito passariam a ser um lema. Algo pairava no ar, embora eu não pudesse ter certeza do que era, mas que me preparava intuitivamente para vivenciar, presenciar, e ter forças para suportar.


Como última escala técnica chegamos ao aeroporto dos Guararapes em Recife. Já era noite e os padrões de segurança da época não permitiam nossa presença a bordo durante o reabastecimento de um Boeing 707. Numa enorme sala ficamos todos à espera da chamada para reembarque quando começaram a se formar filas. Talvez por conta da curiosidade mirim que me cobria desde a saída de Viracopos, resolvi então ficar no final de uma dessas filas. Queria observar aquilo tudo, ver os casacos nas mãos que seriam utilizados só acima do equador, acompanhar as revistas manuais pré-embarque...


Foi nesse momento que me virei e vi um casal, sem vínculos. Ela, morena como uma sertaneja, permanecia cabisbaixa e acuada carregando em seus braços uma pequena malha que talvez fosse adequada para uns 20 graus, não menos que isso. Ao contrário, seu acompanhante tinha um belíssimo casaco de lã, luvas e cara sisuda. Mais ao fundo aparece outro homem, afetuoso talvez por característica ou pena, trazia em sua mão uma garotinha de uns quatro anos que andava aos pulinhos. E descalça.


De novo minha intuição me alertou. A cena, bastante inusitada para um aeroporto onde pessoas usavam botas e sapatos, contrastava com a ingenuidade daquela menina. Talvez fosse uma Severina lembrando morte e vida, talvez fosse uma pequena Iracema. Entregue aos braços da mãe e sob os olhares daquele homem, a malha fria e amarelinha ficou entre elas como um aquecedor para um abraço de despedida, permitido por alguns segundos.


Volta a garotinha em direção à saída com seu “tio” do quartel e segue a fila para embarque, desta feita com o casal de vínculo zero embarcando a frente. O sisudo e a mãe de coração partido.

Pronto, aquilo que eu não sabia o que era, aconteceu. Em minha cabeça uma enorme interrogação e em meu peito apenas reticências, pedaços de pétalas murchas misturadas ao cheiro dos perfumes dos passageiros. Talvez aqueles dois fossem o cravo e a rosa, mas os espinhos estavam com ele, guardados nos bolsos do casaco para usar “just in case”.


Chegamos e fazia bastante frio naquela manhã de dezembro em Lisboa. O inverno de 1970 ainda segurava a presença dos primeiros raios de sol e descendo a escada do avião, o que se via eram luzes, ônibus, carros, pequenos tratores puxando carretas com malas...

Levei algum tempo, talvez alguns anos, para entender o motivo deles desembarcarem a frente de todos em Lisboa. Entramos num ônibus enquanto o casal permaneceu em pé ao lado do avião. Ela não usou sua malha. Quando chegou o carro da polícia para levá-la ao exílio, eu logo notei que o frio da vida já tinha tomado conta de sua existência e talvez fosse melhor não se agasalhar para ganhar mais resistência ao que ainda estava por vir.


Era também um Portugal duro. De Salazar a Marcello Caetano, fazia o papel de anfitrião aos indesejados da ditadura brasileira, provavelmente os recebendo com vinho azedo e migalhas de pão, a mesma que oferecia a seu povo, principalmente os habitantes das ilhas, a extrema periferia cercada de água como eles deveriam considerar com seu escalão.


Não sei, jamais saberei o que houve no final com aquela mulher. Nem com sua filha. Mas sei o que significa amor para os cruéis, para os algozes. Amor eles torturam e matam à bala.


Enquanto permanecia essa covardia ditatorial brasileira, alguns anos depois, lá em Portugal do cantor e compositor José Afonso, surgiram os cravos, em quantidade e fraternidade devolvendo ao povo o que ele mais ordena: Fim da opressão, devolução de seus direitos... Aos 20 minutos e 18 segundos iniciou-se a transmissão da canção “Grândola, Vila Morena” pela rádio Renascença. Era 25 de Abril de 1974. O início da revolução que buscava um ambiente fraterno e solidário: A Revolução dos Cravos.


“Em cada esquina, um amigo Em cada rosto, igualdade Grândola, Vila Morena Terra da Fraternidade”

Hoje, 47 anos separam aquele país triste e escuro de um Portugal mais moderno, com fortes avanços sociais, de lutas, conquistas, segurança e paz. Para que dentro dele não cheguem mais morenas arrancadas de seus filhos, não aportem mais casacos comprados com o suor do faminto e de suas ilhas, aquelas todas lindas e resistentes ao isolamento, surjam sempre o que o povo mais almeja: Trabalho, igualdade, alcance e união entre todos seus filhos.


A revolução dos cravos há que ser lembrada como um divisor de águas. As do mar e dos rios ficam a seu povo por direito. Aos Salazares e afins, que amarguem o vinho da impotência diante do que o povo conquistou, e bebam na sua ressaca as águas maltratadas do período em que eram dirigentes do país.


Portugal de Alfama, de Camões, de Amália, de Coimbra...

Portugal de Bragança, de Guimarães, de Açores, de Funchal.

São flores, são rosas, são cravos.

São de Portugal!


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