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Monogamia: Condição ou consequência?

Morte do Mc Kevin reacende discussão sobre fidelidade: Regra ou escolha?

Como se a pena de morte estivesse prevista em nossa constituição (não está) e como se “traição” fosse crime (não é), pessoas vibraram e zombaram da morte do funkeiro MC Kevin, que supostamente traía a esposa, Deolane Bezerra, minutos antes de cair da sacada de um hotel.


Discursos acalorados pelo momento tomaram as redes sociais e deram lição de moral aos que traem. A viúva, emocionada em no velório do MC, chegou a dizer que “homem casado não anda com homem solteiro”, quase que responsabilizando essa mistura de estados civis pela morte do cantor. Esse editorial se propõe a refletir sobre toda essa situação.


 

OBSERVAÇÃO:

Parte desse texto já estava pronto antes da morte precoce do cantor e se tratava de uma reflexão sobre a cultura monogâmica e seus impactos sobre a liberdade e a violência contra a mulher. Segue:

 
“Meninas A mamãe e eu estamos nos divorciando. Não chorem... Eu Sei que estão chateadas Eu Sei que estão confusas Eu não sei o que a mamãe disse, mas deixa eu explicar isso do meu lado, de uma forma que vocês entendam: Vocês têm essa boneca, não é?! Vocês têm essa boneca Você tem a sua boneca, você gosta da sua sua boneca, você ama a sua boneca Mas e se eu dissesse para você que essa é a única boneca que você vai poder brincar para o resto da vida? Como se sentiria? Se sentiria triste, é claro! Porque tem um monte de bonecas nas suas prateleiras. E se para brincar com as outras bonecas, você não pode mais ter essa boneca aí. Mesmo que essa boneca não queira mais brincar com você, vocês duas estão vivendo uma mentira. Tem outras bonecas que vocês gostariam. Estão fazendo novas bonecas todo ano Quer uma boneca aeromoça? Que tal uma boneca garçonete, ligeiramente acima do peso? Que tal uma boneca que, por acaso, é a melhor amiga da sua boneca preferida? Podia acontecer não é? Que tal a boneca que você só brinca um dia e nunca mais vai vê-la de novo? Que tal a boneca que um amigo seu está brincando e ele quer que você dê uma “brincadinha” com outra boneca. Você nem quer brincar com aquela boneca, mas você brinca, porque seu amigo está brincando com aquela boneca e você não quer ficar para lá e deixar a outra boneca sozinha. Então é por isso que eu e mamãe estamos nos divorciando, a monogamia não é realista.”
Cena inicial de Descompensada (Judd Apatow, 2015) | Em cena: Gordon, o pai (Colin Quinn)

É com o monólogo acima que Gordon (Colin Quinn) o pai de Amy (Amy Schumer), abre o filme Descompensada (Judd Apatow, 2015), explicando o que, ao seu ver, seria a monogamia, ou simplesmente passando um pano na própria imagem, depois de trair a mãe das garotas, que resolveu se separar.


É um dos textos mais crus que encontraremos no cinema sobre o que seria a monogamia e poligamia, não há nessa fala a intenção de convencer (depois há), mas sim uma forma simples de explicar algo óbvio... A vida não é mono.


A monogamia é uma herança da idade média, a era medieval. O casamento tradicional e monogâmico sempre foi uma cortina de aparências, há documentação histórica que datam da Idade Antiga, de Reis e Rainhas que promoviam verdadeiras orgias em seus castelos. Boa parte deles com “aposentos” separados, onde lhes esperavam os criados e criadas responsáveis por protegê-los, banhá-los, vesti-los, despi-los, distraí-los e, até, satisfazê-los sexualmente, se a majestade quisesse.


Oras, mas se queriam viver essa vida de pecados e perversão, por que se casaram? Pode ser que você se pergunte isso e a resposta está na essência do casamento, o início do casamento.

O Jardim das Delícias (El Bosco 1500 - 1505)
Cleópatra, Rainha do Egito (51 a 30 a.C.), foi uma das poucas mulheres com tanto poder e ficou conhecida por um grande apetite sexual. Existem diversas lendas que versam sobre seu "apetite". Algo relativamente comum à época para pessoas com o status dela.

Diferente do que se tornou a celebração de um casamento, onde as pessoas se casam por supostos sentimentos românticos, antigamente não era isso que acontecia. Na maior parte do mundo o patriarcado imperava, as mulheres serviam seus maridos e para nada serviam além da administração domésticas e para gerar herdeiros. É importante ressaltar que as mulheres, geralmente, não eram alfabetizadas, salvo as nobres e em alguns lugares a mulher sequer gozava de fé pública. Sua palavra não tinha valor, e talvez por isso, na bíblia não tenha o livro de Maria, Madalena, ou qualquer outra figura feminina.


Além disso, em tempos de guerras, era muito comum que os soldados fossem para longe e voltassem somente após muitos anos, isso os que tinham sorte de não morrer em combate, ou por alguma doença contraída nessas longas viagens. Não raramente suas esposas deixadas na terra natal, procriavam e davam a eles “filhos dos Deuses” – seria como os filhos do “Boto”, aqui no Brasil – filhos que as mulheres concebiam nos períodos em que seus maridos estavam fora, afinal, é melhor dizer que os Deuses te engravidaram, porque a libertinagem tinha limites, era reservada aos quartos do império e aos homens, mas somente em prostíbulos e tabernas, o ambiente familiar sempre manteve certas aparências.


Como fica evidente que o Amor era algo secundário, quando se falava em casamento, entre as famílias pobres, era o jeito mais barato de um homem ser servido e poder ter o tempo livre para trabalhar e pagar impostos para a Coroa. Além disso, sempre foi estratégico que as pessoas se reproduzissem, pois crianças significavam mão de obra para o labor e para as recorrentes guerras travadas pelos inúmeros impérios/cidades que disputavam territórios, rotas comerciais, recursos naturais e para proteger seus impérios de invasores.


O casamento dos nobres, por outro lado, eram grandes acontecimentos políticos. Geralmente os nobres davam suas filhas em troca de paz, em troca de mantimentos para suas cidades e até em troca de apoio militar. Em tese, quando uma princesa de um Reino, trocava votos com o príncipe de outro Reino, o que se esperava era que, mesmo que esses reinos não se unissem, ao menos decretassem tréguas em respeito a aliança das famílias e quando necessário, apoios militares e comerciais. A expressão “davam suas filhas” pode soar um tanto misógino e violento, mas o mundo até hoje é misógino e violento, esse é o melhor termo para descrever o que acontecia.


A verdade é que a história é recheada desses casos, os impérios que não se enfrentavam é porque tinham casado seus príncipes em uma negociação de paz.


Transformar o Amor em um contrato a ser assinado com sangue (até que a morte os separe) não deveria ser nada romântico, soa perturbador que tantas mortes decorram daquilo que, em tese, é fruto do Amor.


Quantos vidas foram tiradas por ciúmes, futuros brilhantes ceifados por homens medíocres, homens frustrados, homens fracos, desinteressantes e inseguros como crianças , que na iminência de perder aquelas que consideram como se “suas” fossem, cometem um crime tão comum que ganhou até nome: feminicídio, o crime cometido contra a mulher apenas por ela ser mulher. Ou seja, crimes de ciúmes, de ódio, homicídios cometidos, geralmente, por homens que não queriam ver aquelas mulheres livres para serem felizes com outras pessoas, ou simplesmente porque não queriam perder o controle sobre a vida de suas companheiras e se aproveitam da proximidade que têm para matá-las antes que saíssem do cárcere monogâmico.


Um sorriso, uma mensagem de texto, uma piadinha, a ligação do amigo, a conversa com outro homem, o convívio com a família, balada com as amigas, ciúmes, descontrole, bebida... são várias as desculpas que os homens inventam para manterem suas mulheres em cativeiro, para darem gritos, socos na parede, tapas, agarrões, beliscões, empurrões, socos, facadas, tiros...


O caminho é incerto, mas o destino é sempre o mesmo, o fim da autonomia da mulher pelo cárcere, pelo medo ou pela morte.


Dessa vez foi o MC Kevin, um jovem de 23 anos, de origem pobre que estava conseguindo ascender na vida pela sua música e, de repente, por um medo irracional que nenhum de nós deveria ter, ele preferiu colocar a própria vida em risco pulando de um andar para o outro, por medo das consequências de sua traição, que se repita, não é crime.

Dessa vez foi um MC famoso, cuja morte repercutiu, mas a realidade é diferente, a realidade é como a de julho de 2018, quando Tatiane Spitzner foi agredida, asfixiada e jogada pela varanda do apartamento em que vivia com seu assassino, o biólogo Luis Felipe Manvailer.


O mesmo ciúme, tão romantizado por décadas na literatura, na TV e no cinema, capaz de gerar verdadeiros “barracos de família” e situações constrangedoras, é o mesmo ciúme capaz de matar, um sentimento doentio que precisa ser culturalmente combatido e administrado em acompanhamentos psicológicos e psiquiátricos.


Durante nossas vidas mudamos de estilo, mudamos de preferências, trocamos de ídolos, mudamos de crença, alteramos e substituímos nossos sonhos e, eventualmente, aquilo que nós gostávamos antigamente, continua nos agradando, mas isso só acontece porque apreciamos na medida certa, sem excessos, sem exageros, sem exclusividade.


A monogamia pode ser considerada um peso grande demais para carregarmos e para obrigarmos as outras pessoas a carregarem por nós, a troco de uma simples chantagem que é difícil de ganhar, “Sou eu ou um mundo de possibilidades, você escolhe”. Se poupe.


A monogamia é muito ineficaz para a fidelidade, caso contrário a traição não seria um comportamento tão comum. Não seria um genuíno hábito humano; por outro lado a monogamia tem sido assustadoramente eficiente como desculpa para os comportamentos mais animalescos. Em nome da monogamia e do ciúme, em defesa da honra do “corno” medíocre, violência e covardia de toda espécie acontece.


Reflita: A última vez que te quiseram em namoro, foi para satisfazer todas as suas necessidades afetivas, ou foi simplesmente para que você não consiga isso com outra pessoa e acabasse saindo desse relacionamento? Reflita...


Talvez, em uma sociedade mais evoluída e civilizada, a monogamia não fosse uma condição e sim uma consequência de um desejo genuíno por uma pessoa, ou pela falta de desejo por outras; talvez em uma sociedade mais evoluída, as relações que já não são mais feitas como negócios diplomáticos, dê um passo além e passem a se consumar não pelo desejo da exclusividade sobre o outro, mas, sim, pelo desejo genuíno de conviver mais tempo com quem se gosta; talvez daqui alguns anos, casamentos se deem entre amigos, formando uma comunidade domiciliar de pessoas que se amam, não de pessoas que se vigiam e, quem sabe, o sexo com terceiros não defina o relacionamento que deve ou não existir, como vislumbrou a conversa entre a sexóloga Ana Canosa e a editora Barbara dos Anjos.


MC Kevin não precisava morrer por um comportamento tão banal. Em um relacionamento maduro ideal, a conversa sobre desejos e, eventuais, traições não deveriam ser um tabu, um risco de guerra conjugal. Deveria ser apenas uma conversa franca sobre vontades e necessidades humanas, como se conversa sobre culinária, ou nem isso, afinal, relacionamento não é confessionário. Na pior das hipóteses uma conversa madura e um combinado sobre término, indenização da mulher traída e liberdade para ambos viverem como quisessem. Debochar de perdas financeiras geradas por separações, vá lá. Mas a morte por uma traição, é totalmente desproporcional.


Independentemente das suas dúvidas, desconfianças e neuras, a monogamia é e sempre será uma incerteza, uma consequência de um relacionamento completo em si. Existem pessoas traídas que levam anos para descobrirem – isso quando descobrem – tal qual existem pessoas que nunca traíram e foram alvos de injúrias, cobranças, interrogatórios e violência.


Seja monogâmico, seja poligâmico a régua para saber quando um relacionamento deve terminar é uma só. Se te faz bem: mantém; se te faz mal: tchau-tchau.

Final feliz é regra de filme infantil. No mundo real, se está indo mal, “tchau-tchau”.



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