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  • Crítica: Curral (Marcelo Brennand, 2021)

    Uma curiosa obra sobre a política no Brasil profundo O Brasil sempre foi um país de polos políticos, direita, esquerda, extrema-direita, centro e tantos outros posicionamentos. Nas últimas eleições federais, o país entrou de vez no clima da polarização e o cinema, gigante como é por natureza, tem registrado e mostrado todos esses polêmicos momentos do nosso país. Os cineastas nordestinos, mais do que em qualquer outra região do Brasil, têm mostrado isso com louvor e Curral, do pernambucano Marcelo Brennand é mais um exemplar que mostra a nossa política. O filme se passa em Gravatá, uma pequena cidade do interior pernambucano, dividida em distritos, a cidade está sempre em crise hídrica, falta água para todos. No meio disso, somos apresentados ao protagonista Chico Caixa (José Aquino), sujeito trabalhador que dirige um caminhão pipa fornecendo água para sua comunidade. Depois de fornecer água ilegalmente para um grupo de moradores da área rural, Caixa acaba ficando sem emprego, ele se junta então ao amigo Joel (Rodrigo Garcia) que está numa campanha política para concorrer ao cargo de vereador. O protagonista Chico sabe que isso vai ser “uma roubada”, mas é a única solução para não ficar desempregado. O filme mostra não só como nossa política é suja, mas também como nós, seres humanos no geral, somos facilmente corrompidos, especialmente quando “não temos onde cair mortos”, Chico vai, pouco a pouco, abrindo mão dos seus limites morais e entendendo que para chegar aonde quer, precisa vender parte da sua alma. Já Joel, rapidamente parece aceitar essas novas condições, se transformando no pior tipo de pessoa que ocupa os variados cargos públicos do Brasil. O mérito do filme fica no tom realístico ao mostrar as falcatruas dos candidatos e nos diálogos dos personagens, desde aqueles que são destaques, como Aquino e Garcia que estão excepcionais em cena - especialmente Garcia que é um dos melhores atores da nova geração e que precisa ter seu trabalho explorado - até os eleitores que fazem participações. Aliás, a maioria dessas pessoas não são atores profissionais, mas sim moradores de Gravatá-PE que participaram das filmagens. O Brasil pode até ter mudado de alguns anos pra cá, a proibição de comícios, panfletagem, boca de urna, mas cá pra nós, isso tudo é fachada, Curral mostra como era um eleição antes de todas essas proibições, mas em pequenas cidades como Gravatá (a cidade é real), não dá para duvidar que compra de votos e falsas promessas aconteçam de forma escancarada, bandeirolas e figurinos multicoloridos, trios elétricos enormes com músicas que grudam na cabeça e toda população da cidade andando e festejando pelas ruas, são situações que imprimem perfeitamente a disputa eleitoral dos interiores brasileiros, mérito ainda maior é do diretor usar longos planos, fazendo parecer um documentário e que estamos diante de uma verdadeira campanha política. Não é nenhum filmaço, mas para quem ainda vive no “conto de fadas político”, pode ser um soco na mente. Acordem!

  • Quem conhece o Brasil não se surpreende com o assassinato de Moïse

    Indignação sim, surpresa não. Infelizmente, trabalhadores são vítimas sem direitos no Brasil neoliberal “Como o Brasil não para, com uma morte dessas” brandam os revolucionários de ocasião, mas eu gostaria de saber mesmo como o país não parou quando Evaldo Rosa dos Santos teve seu carro alvo de mais de 200 tiros disparados por militares do exército. Também não paramos quando trabalhadores foram mortos pela miopia policial que já confundiu guarda-chuva, furadeira, saquinho de pipoca e até chuteiras com armas, uma miopia policial que só não erra a cor e a classe social de seus alvos. E o que dizer das pessoas que tiraram a vida do Moïse? Acho melhor não dizer o que penso, afinal um, ou, alguns deles são “empreendedores”, figuras sacras na terra do caráter ausente. Não adianta se indignar com o empreendedor assassino de Moïse, apenas por ser cobrado por diárias de trabalho que devia, no Brasil há milhares desses empreendedores que, geralmente não matam, alguns preferem apenas chicotear os funcionários que lhes cobram por seus direitos, ou mantê-los em condições de trabalho escravo contemporâneo (condições de trabalho análogas às de trabalho escravo), já outros tantos preferem apenas roubar o dinheiro devido, simplesmente não pagam, como fez o empreendedor, assassino de Moïse. Deixam os funcionários se virarem para conseguirem advogados enquanto driblam as necessidades da forma que podem em uma vida sem açúcar onde podem ser espancados por roubarem chocolate, enquanto empresários e empreendedores, ladrões rendimentos, com dezenas de processos trabalhistas que, não raramente, reclamam o roubo não apenas de salários e verbas rescisórias, mas desvios também de valores que deveriam ter sido recolhidas como FGTS e INSS. Desvio / roubo que pagaram viagens para a família e uma varanda gourmet com rede, coisa fina, para o patrão ladrão esperar deitado o dia em que a justiça o forçará a pagar o que deve, ou até o dia em que seus advogados convencerão a vítima faminta a aceitar acordos imorais, com o argumento de que na justiça levará anos para a vítima receber. Uma pura verdade, infelizmente a lentidão do sistema judiciário é cúmplice do achaque que o trabalhador sofre diariamente no Brasil. Ainda há aqueles dotados de humanidade que dirão: “Oh, mas esse foi em local público, isso não é comum”. Realmente, talvez em outros países mais civilizados não seja comum, não seja permitido, mas no Brasil é assim mesmo, à luz do dia, me lembro, houve uma vez que amarram um jovem no poste para espancamento em “praça pública”, rachel sheherazade, então jornalista da segunda maior emissora do país disse no ar: “Tá com dó, leva para casa”... você levou? Nem eu. A apresentadora passou anos sendo a queridinha do patrão e nenhuma condenação na esfera cível ou criminal lhe foi imposta, talvez porque, nessa terra de ninguém, a liberdade de expressão permita de um tudo, desde a apologia ao linchamento, como julgo que ela fez, até dissertações sobre os méritos da pessoa estuprada como fez, o então deputado federal - e agora presidente da república - Jair Messias Bolsonaro, vociferando contra a então Dep. Federal Maria do Rosário. Jair, o mesmo que homenageou torturador e defendeu milicianos dentro das casas legislativas onde esteve, sem sofrer nenhuma sanção nem cassação de mandato. A tragédia social que envolve o homicídio de Moïse é algo rotineiro e cotidiano em um país formado pelos canalhas que somos, o problema é que a gente finge não ver, não perceber, fingimos que se não podemos fazer nada contra aquilo, não vale a pena a indignação. Bom mesmo é postar a dancinha que todo mundo posta, as fotos de “tá pago” e uma postura “good vibes” que só dura 15 segundos nos efêmeros stories. Quando a tela apaga, o Brasil continua igualzinho (ou um pouco pior). Ontem, em meio a uma gritaria, liguei a TV para ver o que estava acontecendo. Tinha acabado de sair um gol da seleção brasileira masculina de futebol de campo, e o estádio cantava: “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”. Ainda bem que eu não tenho dinheiro e nem disposição para gastar trezentos reais para ir a um lugar cheio de gente ostentando o brasão da CBF de Ricardo Teixeira, José Maria Marin, Marco Polo Del Nero e Rogério Caboclo, e ainda por cima ter estômago para cantar que tem orgulho e amor por um país que mata “pretos de tão pobres e pobres de tão pretos” diariamente, que matou Moïse espancado depois de cobrar R$ 200 reais que lhe era devido por seu TRABALHO já prestado; um país que apesar do “agropop” não nos permite andar por nenhum grande centro sem que nos depararemos com a miséria e a fome massificadas. Deus me livre sentir orgulho de um lugar assim; já sobre Amar, bom, prefiro não julgar, dizem que o amor é cego. Percebe-se. O Haiti é aqui, o Congo é aqui, a Venezuela é aqui, o autoritarismo assassino e a impunidade dos crimes contra o trabalhador, contra o negro e contra o pobre, tudo isso é aqui. Se te resta fé, reze pelo Haiti, o Haiti é aqui. ____________________ Observação: No texto chamo devedores trabalhistas de ladrões de rendimento e afirmo que eles roubam. Ao pé da letra, talvez o nome correto fosse fraude, desvio, furto... mas chamo de roubo, porque embora não seja um assalto à mão armada, esses se utilizam de uma força chamada impunidade para conseguirem desviar um valor que não cabe a eles. O trabalhador sofre descontos de contribuição do INSS direto na sua folha de pagamento / holerite, quando o empregador não repassa essa verba já recolhida, equivale a tirar da carteira do trabalhador aquele dinheiro e colocar no próprio bolso do empregador, sobre a grave ameaça de que, caso reclame, o trabalhador perde seu trabalho, seu compra-pão. Esses “empresários”, geralmente não cometeriam fraudes contra bancos, contra o sistema financeiro ou contra o Estado, a fraude mais cometida no Brasil é a fraude trabalhista, porque a única vítima de quem você pode roubar e até escravizar, sem ser preso, é o trabalhador. Ainda que o empregador roube 20, 30 mil reais de um trabalhador por meio de desvios, não recolhimento, fraudes trabalhistas de todas as naturezas, a pena dele será sempre mais branda que a do trabalhador que furta 20, 30 reais de alimentos para alimentar seus filhos. Por quê? O caso Moïse é um "latrocínio trabalhista", roubo seguido de morte. Justiça para Moïse Mugenyl Kabagambe.

  • O que esperar nas eleições de 2022

    OPINIÃO: Um belo momento para reverter antigos comportamentos eleitorais A realidade brasileira está permeada por aspectos políticos, religiosos e científicos, com todos eles misturados a ponto de gerar um entrave não só nessas áreas, mas também dentro de outras como educação e economia, deixando o país num verdadeiro turbilhão onde todos são chacoalhados, sobrando as maiores turbulências e trancos aos mais sofridos e vulneráveis. A Internet, esse ser com vida própria e sem controle, tem sido o canal número um para informar com responsabilidade e zelo, tendo em contrapartida os demais usuários da rede que insistem, por interesse ou rebeldia, na distorção de fatos, na propagação de erros e na incitação da discórdia e do ódio. É inacreditável que diante do derrame assombroso de notícias falsas por parte do próprio governo, nada ainda tenha acontecido no sentido de punir com o rigor da lei, esses que insistem em colocar de ponta cabeça um país que a todo instante é arrancado dos trilhos. Interesses, gostos pessoais, desinformação, trapalhadas e descaso seguem leves e soltos nas mãos de algozes que ainda circulam livremente não só pelas ruas, mas também dentro de igrejas, nos gabinetes públicos e, mais perigoso ainda, dentro da própria ciência. Todos os esforços médicos na conduta de uma pandemia que assola o mundo e dá uma surra no Brasil, são rechaçados pelo próprio presidente da república, um homem desprovido de conhecimento e cultura, mas que insiste em atacar condutas sérias e importantes no controle da doença, agindo como um embriagado pelo poder, negando a eficiência das vacinas e, ao mesmo tempo, garantindo por lei um sigilo de 100 anos à sua carteira de vacinação. Uma incoerência tão real quanto sua falsidade e hipocrisia, deixando claro que aquilo que nega ao povo não será negado a ele, como a vacina, que ele prefere esconder ter recebido. Igrejas dotadas de comportamentos estranhos, que pregam de acordo com suas interpretações rasas, mornas e hipócritas, se agarram a personagens políticos como Bolsonaro no intuito de seguir enganando, confundindo e ludibriando fiéis, inclusive na escolha de candidatos. Duvido que fossem capazes de entender e revelar a besta, citada nas escrituras, que viria como um poder político religioso. Isso eles tiram da pauta, lógico. Há que se pensar sobre o que mais está na programação desses disseminadores de ódio e mentiras, principalmente agora em que os próprios falsos conservadores e falsos profetas já se conscientizam que o próximo presidente virá desbancando candidatos no primeiro turno, ao que tudo indica. Quanto ao povo, veremos que alcance terá em entender e separar mentiras de verdades, quem sabe certeiros em suas escolhas nas urnas, baseadas na armadilha em que o país caiu.

  • Retrospectiva da cultura pop internacional

    Veja o que rolou de mais marcante na cultura pop internacional em 2021. Fim do ócio. Ontem a Dossiê voltou ao ar, oficialmente, com a coluna "Tribunal das Artes Incorretas: 'Aqui ninguém os aguenta mais'" escrita pela advogada Marina Frederico, depois de um pequeno período de descanso no início do ano. Coisa de portal independente. Agora que voltamos, que tal começarmos um pouco diferente?! Dizem que não cobrimos como deveríamos a cultura internacional, uma verdade, já que o foco do portal é nacional. Mas, para não dizerem que estamos alheios ao mundo, voltamos com uma pequena “retrô” sobre o cenário internacional em 2021. E se quiser saber tudo que cobrimos sobre a cultura, você encontra aqui. O Brasil passa por um momento delicado no setor cultural, desde a transição do governo em 2018 e com a Pandemia em 2020, o setor cultural foi um dos mais afetados, mas em 2021, com a vacinação avançando em todos os cantos do Brasil, os eventos culturais voltaram acontecer, agora com público. Feiras de artes retomaram, galerias, cinemas e teatros também começaram a reabrir suas portas nos lembrando do quanto valorosa a cultura da vida real pode ser. Lá fora, o Oscar aconteceu presencialmente, o Met Gala teve seu tradicional desfile no tapete vermelho, o fim da Era Trump também gerou um alívio e a cerimônia de posse presidencial dos Estados Unidos em janeiro, parecia muito diferente dos anos anteriores, por uma porção de motivos, primeiro porque todos usavam máscaras, o desfile cerimonial foi cancelado, o concerto de inauguração repleto de estrelas foi realizado virtualmente e Donald Trump não apareceu. No mesmo evento, muitas estrelas compareceram para assistir pessoalmente, além de Joe Biden, sua vice-presidente Kamala Harris e até a estrela pop Lady Gaga, Amanda Gorman, a poetisa mais jovem já convidada a declamar em uma posse presidencial nos EUA, foi quem cativou o mundo lendo “The Hill We Climb” (A Colina que Subimos), com certeza um dos momentos mais marcantes do ano. O ano foi marcado com o, justo, aumento da visibilidade transexualidade e um reconhecimento contínuo da injustiça racial. Elliot Page (Juno), tornou-se o primeiro transgênero a aparecer na capa da revista “Time”; no mundo da música, Britney Spears foi um dos assuntos mais comentados ao longo do ano, não por conta de um álbum novo, mas sim por conta da tutela do pai, Jamie Spears, sobre a cantora, que foi questionado na justiça. O movimento #FreeBritney foi um dos maiores de 2021, o fim da saga chegou em novembro, quando um juiz de Los Angeles encerrou o acordo legal que já durava 13 anos. Ainda no setor musical, Lil Nas X foi um dos nomes mais comentados do ano, mas ao contrário da nossa loira Britney, Lil soltou um álbum novinho, emplacou canções ao longo do ano e ainda lançou o “Tênis do Satanás” que continha um pentagrama de bronze, uma cruz invertida e uma gota de sangue humano real. Os Nike Air Max 97, modificados, foram o resultado de uma colaboração entre o músico e o coletivo de arte MSCHF de Nova York, a dupla criou 666 pares que obviamente foram todos vendidos. O cinema, como é natural, ano após ano faz história, Chloé Zhao tornou-se a primeira mulher de descendência asiática a ganhar o prêmio de Melhor Direção no Oscar, por seu trabalho Nomadland que também levou a estatueta de Melhor Filme. Ela foi a segunda mulher a receber o prêmio de direção, a primeira foi Kathryn Bigelow por “Guerra ao Terror”, em 2010. Os cinemas voltando abrir as portas, os chamados “arrasta quarteirões” foram lançados “Homem-Aranha – Sem Volta Pra Casa” foi a maior bilheteria do ano e a maior, também no Brasil; os maiores festivais de cinema também voltaram a sua forma presencial, em Cannes, a segunda mulher na história levou a Palma de Ouro, o nome dela é Julia Docurnau e seu “Titane”. A Princesa Diana que nos deixou em 1999, em um acidente de carro, voltou a ser assunto em 2021. A quarta temporada de The Crown ganhou absolutamente todos os prêmios principais na cerimônia do Emmy em setembro. A série mostrou como a relação de Diana e a família real era complicada. Ainda na crista da onda, uma entrevista explosiva de Harry e Meghan para Oprah, provocou novas comparações entre a Duquesa de Sussex e sua falecida sogra. Já no Festival de Veneza, o filme “Spencer” foi lançado em meio a aclamação da crítica pela atuação de Kristen Stewart no papel principal. As Olimpíadas aconteceram, com um ano de atraso por conta da Covid-19, mas aconteceu. Na cerimônia de abertura, o estádio vazio contrastou com uma abertura marcada por tecnologias de ponta, como já é de se esperar de um país como o Japão, mas marcado, também, por conta do vestido arco-íris com babados do estilista de Tóquio, Tomo Koizumi, feito de dezenas de camadas de organza reciclada e usado pela cantora japonesa Misia, para apresentar o hino nacional de seu país, “Kimigayo” e claro, jamais esqueceremos de Tom Daley, o atleta britânico de saltos ornamentais, o medalhista de ouro do salto sincronizado, que começou a tricotar em março de 2020 para passar pelo lockdown e conquistou corações quando surgiu em uma foto tricotando na arquibancada do ginásio – o que mais tarde acabou por ser um suéter de cachorro, o atleta “hypou” o tricô. O mundo perdeu muita gente talentosa, muita gente que era para estar entre nós destilando seu talento, dentre eles Paulo Gustavo, Eva Wilma, Marilia Mendonça, Gilberto Braga, Betty White, Jean-Marc Valee, Paulo José, Tarcísio Meira, Nicete Bruno entre tantos outro, fica a nossa solidariedade a todas as famílias e fãs. O que passou, passou e, de alguma forma, o ano de 2021 ficará marcado em nossas memórias, vamos em frente. Juntem-se a nós para se informar com tudo de mais importante que houver para saber em 2022. Bom ano a todes!

  • Tribunal das artes incorretas: "aqui ninguém os aguenta mais"

    "Eu não queria jogar confete, mas tenho que dizer Ce tá de lascar, cê tá de doer.” Caríssimos e caríssimas, a música Com Açúcar e Com Afeto foi escrita a pedido de uma mulher cujo último adjetivo que lhe cabe é submissa. Ao contrário, uma mulher nascida no ano de 1942, que, ao perceber a realidade de subordinação ao qual sua mãe, Dona Tinoca, era submetida, via que não era aquela vida que desejava para si. Evidente que esta postura advém também do contexto político e cultural no qual estava inserida, juventude dos anos sessenta e setenta. Essa mulher era Nara Leão. “Que dona Tinoca continuasse sendo a Amélia de Jairo Leão – pai de Nara. Nara seguiria o caminho inverso do escolhido pela mãe, o da liberdade e da independência – ela estaria de braços abertos para o namorado e quase marido, mas não admitiria nenhum arroubo machista de Cacá Diegues.” (pág. 108) Nara, ao perceber que, muitas das músicas que vinham sendo compostas colocavam a mulher quase alienada de sua posição, pediu a Chico Buarque que escrevesse uma letra na qual a mulher tivesse absoluta consciência da condição que lhe era imposta. Daí nasceu a deliciosa canção: Com açúcar, com afeto. “Nara queria uma canção que assumisse uma posição feminina, narrada por uma mulher. E que não fosse a Amélia de Ataulfo Alves e Mario Lago (autores do samba 'Ai que saudade da Amélia', lançado em 1942), aquela que não tinha a menor vaidade e, se preciso, passava fome ao lado do marido." Essa dona de casa idealizada por Nara deveria, ao menos, ter consciência de suas privações e não aceitar prazerosamente o papel da submissa e resignada. Chico entendeu o recado e compôs “Com açúcar, com afeto”. (Ninguém pode com Nara Leão, uma biografia. Tom Cardoso, pág. 107). Já no ano de 1975, imortalizada na voz de Maria Bethânia, Chico lança a música Sem Açúcar que, de maneira muito mais incisiva, traz a fala de uma mulher que evidentemente opta – e com absoluta consciência dos prejuízos que isso lhe acarreta – vivenciar uma relação insana. Ora, caro leitor e leitora, salta aos olhos que a canção não é uma propaganda e quiçá uma apologia a esse modelo de vinculo abusivo, machista e insalubre, mas sim, um retrato cru da realidade que ocorre nas complexas relações humanas. A arte, se é que possui algumas finalidades para além de ter o fim em si, essa certamente é uma delas: retratar com cuidados estéticos fatos da vida sem julgamento moral e despida da imposição do correto e do equivocado a ser feito. Por essas e outras que recusar-se a ouvir, cantar ou até mesmo conhecer músicas como Amélia, leva ao imenso desperdício cultural e a uma negação quase infantil de como as relações amorosas eram e algumas são. Ouvir e, até mesmo, admirar esteticamente, não significa em momento algum aplaudir a esse modelo de vínculo. Assim como, cantá-la está a anos luz de incentivar alguém a agir dessa forma ou de outra. Os que fazem isso são autores de livros de autoajuda. Aliás, a saudosa Elza Soares, dentre tantos legados marcantes para a música no Brasil, nos presenteou com mais esse ensinamento: que a música não deve ser censurada por retratar cruezas da realidade! Ao contrário, devem ser cantadas, inclusive pelo oprimido, pois, assim, descortinam-se os fatos, traz à tona o que realmente ocorre nesse país tão cordial e democrático. Não há nada pior do que fingir que o racismo não existe, que o machismo não era, e não é, bem assim; que homofobia já passou etc. Elza, não se curvando ao politicamente correto, fez questão de cantar músicas como “Vai ter que rebolar”, “O Neguinho e a Senhorita”, “Mulata Assanhada” dentre outras maravilhas da música popular brasileira que, despidas de qualquer hipocrisia mostram a cara do Brasil. Claro, sempre com a beleza que a música exige. Espero que nunca tenham a ousadia de difamar Elza por emprestar sua voz a essas canções. Se a acusarem de racismo, aí sim será o fim do mundo. Mas, para além disso, a arte também pode funcionar, não como uma manifestação do que ocorre, mas como uma clara denúncia, vide Mulheres de Atenas. Esta que, muito mal interpretada, aliás, erroneamente interpretada, pela lente rasa da literalidade, fora acusada de machista. Aqueles, aquelas que lhe apontavam o dedo não perceberam a gritante e evidente ironia que contém nos versos da bela canção “Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas Sofrem pros seus maridos, poder e força de Atenas Quando eles embarcam, soldados Elas tecem longos bordados Mil quarentenas E quando eles voltam sedentos Querem arrancar, violentos Carícias plenas, obscenas.” Além disso, os promotores do sagrado tribunal das artes incorretas, não entenderam que “mirem-se”, no exemplo, traz o sentido de mirar para um espelho, onde se enxerga o inverso. Enfim, como dizia nosso querido Jobim, que essa semana teria completado mais uma primavera, no Brasil nós temos as melhores músicas do mundo e escutamos as piores. Que triste! O maior temor é que, para além de ignorar as melhores e ultra valorar as mais benéficas à indústria musical, caiamos no obscurantismo de censurar o que temos de material cultural nesse país. Meu, quem dera, caro amigo Chico, você não se curvou nem à censura da Ditadura Militar que lhe ameaçou a vida. Pela riqueza cultural que você alimentou nesse país, peço, não se curve a ataques ignorantes daqueles que desejam o fim do patrimônio cultural brasileiro.

  • Globo de Ouro 2022 - Previsão de Vencedores

    Envolto em polêmicas, o Globo de Ouro de 2022 não terá transmissão ao vivo esse ano, mas a Dossiê conta tudo para você O Globo de Ouro (Hollywood Foreign Press Association) acontece no próximo domingo (9), pela segunda vez na história- a primeira foi em 2007, por conta da greve dos roteiristas – não haverá cerimônia, a NBC, emissora que transmite a premiação anualmente, decidiu cancelar a transmissão de 2022 por conta das inúmeras polêmicas que os Globos se envolveram, dentre elas, a compra de votos, presente dos estúdios para os votantes e, claro, a ausência total de negros dentro da agremiação. O canal deu um ultimato para os organizadores, ou eles mudam, ou então... Interessante é que, o Globo é a premiação com maior índice de audiência – maior que o Oscar – e mesmo assim, eles decidiram cancelar. os prêmios serão entregues durante um evento privado, sem presença e sem transmissão, mesmo assim, o Globo de Ouro ainda é uma premiação importante e que normalmente costuma dar um “twist” nos prêmios. CINEMA Os filmes mais indicados esse ano são Belfast, de Kenneth Branagh e Ataque dos Cães, de Jane Campion (disponível da Netflix) com 7 indicações cada um, ambos dramas. Amor, Sublime Amor, de Steven Spielberg, Não Olhe Para Cima, de Adam McKay (disponível da Netflix) e Licorice Pizza, de Paul Thomas Anderson, todas com 4 indicações são os maiores dentre as comédias e musicais. O que mencionei acima, as polêmicas que a premiação se envolveu, devem atingir diretamente os premiados desse ano, o Globo que costuma surpreender na hora de anunciar seus vencedores, esse ano deve ir ao mais seguro, segue os prováveis vencedores nas categorias de cinema. Drama - Belfast Comédia – Amor, Sublime Amor Direção - Jane Campion, Ataque dos Cães Ator Drama – Will Smith, King Richard – Criando Campeãs Atriz Drama – Kristen Stewart, Spencer Ator Comédia – Andrew Garfield, tick, tick…Boom! Atriz Comédia – Rachel Zegler, Amor, Sublime Amor Ator Coadjuvante – Jamie Dornan, Belfast Atriz Coadjuvante – Ariana DeBose, Amor, Sublime Amor Internacional – Drive My Car (Japão) Roteiro – Apresentando os Ricardos Trilha Sonora – Ataque dos Cães Canção – 007 – No Time do Die Animação - Encanto TELEVISÃO Succession (HBOMax) obviamente foi a série mais indicada com 5 nomeações, a Netflix fez que fez que conseguiu, Squid Game (Round 6 no Brasil) é a primeira série em idioma diferente do inglês indicada ao Globo de melhor série, o sucesso de 2021 pegou 3 indicações, dentre as comédias o sucesso de Ted Lasso (Apple+) continua, a segunda temporada abocanhou 4 indicações, segue as apostas para os vencedores nas categorias de televisão: Drama – Succession (HBOMax) Comédia – Ted Lasso (Apple+) Minissérie ou Telefilme – Mare of Easttown (HBOMax) Ator Drama – Jeremy Strong, Succession (HBOMax) Atriz Drama – MJ Rodriguez, Pose (Star+) Ator Comédia – Jason Sudeikis, Ted Lasso (Apple+) Atriz Comédia – Jean Smart, Hacks (HBOMax) Ator em Minissérie ou Telefilme – Michael Keaton, Dopesick Atriz em Minissérie ou Telefilme – Kate Winslet, Mare of Easttown (HBOMax) Ator Coadjuvante em Série, Minissérie ou Telefilme – Kieran Culkin, Succession (HBOMax) Atriz Coadjuvante em Serie, Minissérie ou Telefilme – Hannah Waddingham, Ted Lasso (Apple+)

  • Micro e Pequenos que lutem; Refis só tem para gente grande

    Governo veta "RELP" para MEIs e SIMPLES Nacional. Suporte econômico continua concentrado nas grandes empresas. Hoje o presidente Jair Bolsonaro vetou um programa de refinanciamento de dívidas para MEIs e optantes pelo SIMPLES nacional. A justificativa oficial foi de que o programa fere o interesse público por gerar renúncia de receitas e violar as leis de responsabilidade fiscal. O projeto de lei complementar 46 de 2021 (PLP 46/21) que foi aprovado na Câmara por larga maioria com apenas 10 votos contra após ser aprovada, por unanimidade, no Senado Federal, com 69 votos a favor, o que leva a crer que o poder legislativo provavelmente derrubará o veto presidencial. Independentemente disso, uso minha coluna de hoje para explicar esse projeto e apontar a imoralidade que é vetar um projeto como esse no país do famigerado REFIS. A PLP 46/21 foi proposta para que MEIs e empresas optantes pelo Simples, que tiveram perda de faturamento por causa da pandemia, possam ter condições especiais de refinanciamento da dívida com o fisco e previa descontos de até 90% sobre os juros e multas, através do que seria o Programa de Reescalonamento do Pagamento de Débitos no Âmbito do Simples Nacional (Relp), algo justificado pelo momento de dificuldade econômica pela qual o país passa. O resultado esperado desse tipo de iniciativa é a manutenção das atividades de empresas que, dada a própria natureza pequena, não dispõem de boas condições de crédito nem caixa para suprir o pagamento desses juros e multas sem desinvestir na empresa. Seria um novo REFIS? Apesar da aparente semelhança com o programa de Recuperação Fiscal, o REFIS, o RELP, programa vetado pelo presidente, é bem diferente, principalmente pelo alvo do benefício. Enquanto o RELP, vetado pela presidência, atenderia Micro Empreendedores Individuais (MEIs), categoria com renda máxima de 81 mil reais por ano (6.750 / mês) e empresas optantes pelo Simples, micro e pequenas empresas com faturamento máximo de 4,8 milhões por ano (400 mil / mês), o REFIS é mais polêmico, pois grandes empresas o usam regularmente, não para se organizarem após períodos de turbulência, mas como estratégia fiscal para turbinarem os lucros. Na edição de 2018, por exemplo, bancos e fábricas de bebidas foram as que mais obtiveram descontos, mais de 50% em média. Setores que passam longe de crises aqui no Brasil. Conforme apurado pela Folha de S. Paulo, na ocasião, o Itaú por exemplo, o maior banco nacional em faturamento e lucro líquido, obteve 57% de desconto no Refis de 2018, pagando apenas 74 milhões, dos mais de 173 milhões de reais devidos. Algo que poderia ser visto como inofensivo caso o banco passasse por dificuldades, queda nos lucros e caso não tivesse distribuído 9 bilhões de reais apenas para duas famílias que compõem o quadro de sócios majoritários. Ao todo o banco distribuiu mais de 24 bilhões de reais em lucros e dividendos, a maior parte livre de tributação. Outro que se deu bem foi o banqueiro André Esteves, que aderiu ao REFIS para sua pessoa física, após acumular dívida pessoal de 92 milhões de reais com a receita federal. Conseguiu o acordo e pagou apenas 44,5 milhões, o resto foi a população quem pagou. O desconto é tão absurdo e abusivo que, no caso do Itaú, poderia pagar quase 2 vezes os 52 milhões de reais que apenas o presidente do banco recebeu no ano seguinte, conforme apurado pela revista Exame. A mim, parece abusivo um banco pagar um valor assim para um executivo, distribuir 24 bilhões em lucro enquanto achaca os cofres públicos com 57% de desconto nos impostos devidos, no mesmo ano em que o teto do funcionalismo público girava em torno de 500 mil reais (na melhor carreira) e o salário-mínimo anual do país era de pouco mais de 13 mil reais, 4 mil vezes menor que o salário do presidente do banco. Mas esse não foi o único caso. Empresas como JBS, BRF e Marfrig, alguns dos maiores frigoríficos, juntos, conseguiram mais de 1,6 bilhão de reais em desconto, 34% dos 4,7 bilhões devidos. Públicos diferentes, problemas semelhantes: Todos os programas de refinanciamento fiscal guardam problemas sérios. É através da arrecadação desses impostos que o Estado se financia, não apenas para pagar a manutenção da estrutura como salários de professores, médicos, policiais e de todo o funcionalismo, como também é com esse dinheiro que o país paga os juros da dívida, a previdência pública e faz investimentos em infraestrutura para podermos crescer economicamente. Logo, quando se fala em refinanciar impostos com descontos tão altos como no caso do REFIS, estamos falando de duas visões simultâneas: se por um lado é possível reforçar os cofres públicos com um valor devido, que de outra forma algumas empresas não teriam como pagar, por outro lado, é importante lembrar quem paga esses tributos são os consumidores dessas empresas, já que os tributos estão embutidos nos preços dos produtos e serviços, essas empresas apenas repassam o valor arrecadado para a autoridade fiscal, de modo que quando não fazem, estão desviando dinheiro público. Quando o desconto é dado, o consumidor/cidadão é lesado, pois não terá a integralidade dos seus impostos retornados em serviços públicos de qualidade, mas sim em benefício para empresas que, como vimos, nem sempre correm risco de falência ou prejuízos, apenas se aproveitam das brechas de leis pessimamente elaboradas. Basta saber se a baixa qualidade das leis acontece por má fé ou por ignorância dos legisladores que, de alguma forma, podem receber vantagens como as doações para campanhas, que ainda são possíveis se partidas de pessoas físicas e de outras formas tradicionais no cenário político brasileiro. Faltam contrapartidas e medidas austeras: O ano é 2008, a crise financeira se instala no mundo graças a atividade bancária estadunidense que àquela altura especulavam absurdamente com títulos imobiliários e por isso facilitavam o crédito irresponsável. Bancos faliram, empresas faliram, milhões de pessoas em todo o mundo perderam seus empregos e o problema poderia ter sido pior, o governo federal estadunidense à época representado por George W. Bush emite ajuda financeira para a gigante General Motors (Chevrolet), a fim de evitar a falência da empresa e a extinção de centenas de milhares de empregos do dia para a noite. Porém, houve uma condição, a empresa deveria cortar os salários dos executivos e extinguir todos os luxos, vender jatos, cancelar contratos de voos executivos e outros vários luxos inadequados para aquele momento em que a empresa passava o chapéu para não quebrar, até questões de sustentabilidade e emissão de carbono foram postas à mesa. Pois bem, os empregos foram salvos e a empresa se tornou mais austera, cortando a gordura onde mais tinha e menos doía, no alto escalão da empresa, até os bônus por resultados foram vetados, racionados e racionalizados. Sempre que um país passa por crises, como a Grécia passou, a ponto de precisar de apoio internacional, o mundo cobra desses países, seja na figura do FMI, ou de grupos econômicos como a OCDE e União Europeia, o que ficou conhecido como “medidas austeras”, ou, em português claro: corte de gastos, economia, fechar a torneira do dinheiro... algo que eu e muitos economistas progressistas e desenvolvimentistas acham uma tolice do ponto de vista de uma nação, pois não é razoável tentar consertar as contas de um país deixando o povo mais vulnerável em dificuldades, sem serviços ou políticas públicas de impacto social. Mas para empresas, esse tipo de contrapartida é extremamente necessária e razoável, afinal, quando uma empresa afunda, geralmente o furo está no lucro e patrimônio exagerado dos “capitães” que não afundam junto. Sabendo que o dinheiro público nada mais é do que fruto de impostos que cidadãos pagam e empresas repassam para o poder público, é mais do que óbvio que quando uma empresa desvia esse dinheiro para pagar outros custos, que não repassar à receita federal, se deve a um momento de grande dificuldade. E se, principalmente, as grandes empresas (faturamento anual acima de 300 milhões de reais) acham justo usar dinheiro público para sanar problemas de uma empresa privada, é justo que na hora de acertar as contas com o fisco, ao obter vantagens como descontos, parcelamentos ou abatimento de juros, essas empresas gerem contrapartidas sociais e adotem medidas de austeridade como, por exemplo, redução de salários dos executivos para o teto do funcionalismo público, venda de aeronaves particulares e outros bens não inerentes a atividade final da empresa, obrigatoriedade de viagens em voos comerciais comuns ao invés de jatinhos alugados, suspensão de distribuição de bônus, lucros e dividendos, obrigatoriedade de reinvestimento de 100% do lucro do ano em que o benefício foi conseguido, manutenção de todos os postos de trabalho por pelo menos 1 ano e enquanto durar o parcelamento do benefício. Essas medidas austeras, que deveriam ser aplicadas às grandes empresas que aderem ao REFIS e outros benefícios fiscais, não são, já os micro e pequenos empresários, responsáveis por mais de 50% dos postos de trabalho do país, que na maioria dos casos têm renda inferior a renda dos funcionários de grandes empresas, esses acabaram de ter o seu tímido RELP, negado... HEEELP! Esse artigo utilizou dados apurados pela Folha de S. Paulo e revista Exame, originalmente citados em conclusões publicadas no livro Pobreza à brasileira (2020).

  • Crítica: Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar (Marcelo Gomes, 2019)

    O maravilhoso documentário de Marcelo Gomes que mostra as raízes de um povo "raçudo" que encontra sua redenção no carnaval. Marcelo Gomes é um dos diretores mais enraizados, transitórios e versáteis do nosso cinema. Para quem não é muito familiarizado com sua obra, ele é o diretor de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), mostrando dois “amigos” e, com abordagem completamente diferente, em parceria com Karim Aïnouz, dava um toque documental para o drama “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo” (2009) em que retrata o sertão nordestino pelos olhos do José Renato (Irandhir Santos) um geólogo que faz levantamento de fontes de água. Agora, em seu novo documentário, Gomes faz uma viagem pessoal por onde passou quando ainda era criança com seu pai, na cidade Toritama – PE, o centro ativo do capitalismo local, onde mais de 20 milhões de jeans são produzidas anualmente em fábricas caseiras. Os moradores locais orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o carnaval, que é quando chega a semana de folga. Eles vendem tudo que acumularam, inclusive eletrodomésticos para poderem ir descansar em praias paradisíacas enquanto aguardam a chuva que, tradicionalmente chega após o último dia de carnaval. Hábitos que se repetem ano após ano. O cineasta e diretor do filme caminha por Toritama e ele claramente tem uma relação especial, particular com a cidade, Marcelo Gomes não só ocupa a cadeira de diretor, mas também é o protagonista, ele se coloca em cena, tanto na imagem quanto no som, expondo-se em suas motivações, suas abordagens de entrevista aos moradores e suas escolhas de enquadramento. Em uma das cenas mais marcantes, um dos trabalhadores faz um trabalho manual, um trabalho cansativo, incessante, repetitivo, na cena o diretor tira o som da máquina de costura e explica o motivo daquilo. Marcelo esperava encontrar a mesma cidade de sua memória afetiva, de quando ainda era criança, uma Toritama calma, mas se depara com a agitação de um capitalismo improvisado e acelerado, uma cidade que não para de trabalhar nunca, eu particularmente não consegui captar se o diretor estava frustrado ou não, mas para qualquer efeito, ele usa o que está diante de seus olhos e sua câmera com uma meta: documentar a rotina, os sonhos e objetivos daquelas pessoas. O interessante é que o diretor parece dividir o documentário em duas classes – lembrando que ele é o protagonista, logo, também é um personagem – ele, o protagonista tem um posicionamento progressista, que hoje vive na cidade grande e guarda na lembrança uma imagem romântica do interior nordestino silencioso; do outro lado, pessoas sem formação acadêmica, com a fala atrapalhada, cujo investimento na produção do jeans permitiu um salto veloz na qualidade de vida. Aquelas pessoas ali entrevistadas não são pobres, elas são humildes e em uma das entrevistas uma entrevistada diz que quem imagina que a vida de quem vive em Toritama é ruim, está muito enganada. Gomes filma obsessivamente as máquinas de costura em funcionamento, as mãos ágeis operando os tecidos, as calças sendo desfiadas e bordadas, os vendedores negociando preços, mostrando com maestria como as pessoas ali são dedicadas e que acima de tudo gostam do que fazem. O filme é brilhante em sua própria humildade, Marcelo Gomes sabe o que faz, sabe como abordar pessoas, sabe como capturar os momentos, sabe que o trabalhador se cansa e que dorme no meio do expediente, sabe que o trabalhador tem mil e uma profissões, que sabe fazer tudo, é um documentário inspirador e gigante, assim como nós brasileiros.

  • EDITORIAL: Vem aí, mais um ano novo

    2022: Ilusão VS Pragmatismo É chegado o final de mais uma volta em torno do sol. Aqui na terra consideramos isso um grande feito e nos sentimos a vontade para comemorar isso, como se isso não fosse natural e fossemos merecedores de todos os louros e festejos por isso. Mas é mais simples do que isso, é só uma volta ao sol, se estivéssemos aqui, ou não, daria no mesmo, o planeta daria a mesma volta em torno do sol, completaria essa volta no “mesmo dia” e na “mesma hora” que ocorre conosco aqui, depois de submeter as várias regiões terrestres às quatro estações. Nesse último editorial de 2021, poderíamos desejar um ano novo cheio de saúde, paz, alegria, amor, esperança e prosperidade e sim, faremos isso, (segue spoiler) no final do texto, mas antes, esse editorial acha prudente desejar coisas mais reais. Podemos começar pela prosperidade: Claro, todos sabemos que usar roupas íntimas amarelas nos farão ter um ano mais próspero, é um consenso, mais sagrado que pular as sete ondinhas, mas não. Não vai acontecer. Na verdade, o comércio vai desencalhar um monte de peças com cores muito vibrantes que estavam encalhadas, mas por aqui é melhor desejarmos que você poupe, esqueça os supérfluos e escolha bem onde você gasta. Quanto menor a renda da população, maior é o seu valor como escolha política, quando o dinheiro fica escasso é bom que ele flua de cima para baixo, sendo gasto em comércios locais, pois os pequenos precisam de apoio e geram, proporcionalmente, mais empregos por faturamento, do que as grandes marcas. Saúde para correr, vibrar, cantar e aglomerar. Saúde para os encontros, para os amores, para os amigos, para a família, mas vamos com calma, a pandemia não acabou e o número de casos é o maior de todos os tempos desde o início da pandemia. Apesar dos sintomas mais brandos da variante Ômicron e de uma parte do globo com imunização adiantada, não há como prever como o vírus irá se comportar em nosso organismo a longo prazo e não dá para ignorar que 1,7 milhão de novos casos em apenas um único dia, é o cenário perfeito para a criação de novas variantes que podem ser mais agressivas e ainda mais transmissíveis do que a última grande variante conhecida. Ao que tudo indica, podemos ter que retomar aos cuidados das ondas anteriores. Paz: Esqueça isso, paz virou um conceito abstrato, algumas pessoas têm conseguido atingir paz interior ainda que o mundo esteja um caos, já as pessoas vítimas do caos instalado por esse governo, não sabem sequer o que é ter paz. A paz é como “Deus”, uma força superior de forma abstrata para qual todos rezam, mas que poucos se arriscam a dizer que sentiram, afinal, poucos são os que desfrutam das graças de Deus e da Paz. O ano de 2022 será um ano de conflitos, debates e defesa de um Estado Democrático De Direito. Claro, é altamente recomendável que as pessoas possam, eventualmente, se retirarem de suas rotinas e se deleitarem com qualquer lazer barato que as satisfaça e tempere a vida com um punhado de sorrisos, porque economicamente, ao que tudo indica, a coisa só vai piorar e não há paz onde há fome. Amor... Bom, os tempos andam difíceis até para amar. Os números da violência doméstica não param de subir e com a pandemia, parece que todo mundo se sentiu mais dono de todo mundo. As rotinas estão voltando, pessoas têm voltado aos escritórios (aqueles que ainda têm empregos), aos encontros com amigos e o ciúme tem dado o tom da tragédia. Mulheres violentamente agredidas, espancadas, esfaqueadas, baleadas, mortas à luz do dia. Quando contam com alguma sorte, conseguem receber apenas violência moral e verbal, essas podemos chamar de sobreviventes. Para o Amor nossos votos é que antes de juntar os trapos e as escovas de dentes, que ambos tenham um fundo de reserva individual para emergências, para fugir se necessário e reestabelecer sua vida em outro lugar, em outra cidade, longe do agressor, já que a justiça e a polícia não têm sido céleres e eficientes em evitar as tragédias. Desejamos que nesse ano ninguém romantize o ciúme e ao invés disso fuja de qualquer relacionamento ao primeiro sinal de ciúme, a qualquer demonstração de posse; parece grotesco falar assim sobre o tão socialmente desejado “Amor”, mas a verdade é que são as relações amorosas e os ciúmes os responsáveis diretos pela imensa maioria de casos de violência doméstica e a falta de independência financeira ainda é o principal motivo que mantém vítimas de violência doméstica presas aos seus agressores. Ao menor sinal de ciúme, termine, a distância entre o ciúme e a violência é o primeiro tapa, e a distância entre um tapa e uma morte, pode ser uma faca. Considere viver só, com relações livres e efêmeras, a solteirice é um templo de paz perto das violências morais e físicas possíveis dentro de um relacionamento em regime de exclusividade, vigilância e controle. Esperança: Às vezes pensa-se a esperança como a virtude e/ou habilidade dos otimistas. Esqueçamos essa tolice, a virtude do otimista é a fuga da realidade, a auto enganação. Todo otimista é um maquiador de realidades, quando as coisas dão certo, acontecem tarde, o otimista só finge não perceber. Mas a esperança, bom, essa cabe aos realistas, porque até quando se analisa o cenário e se constata o caos, é possível esperar, esperançar sobre um eventual futuro menos cruel, menos dolorido, menos desigual e menos desumano. Repito, isso não é papo de otimista nem privilégio dos abastados, bem da verdade, o privilégio dos abastados é viver, não esperar nem ter esperanças — se não pela manutenção da qualidade de seus próprios privilégios—. Longe de ser um privilégio, ter esperanças é uma necessidade do pobre, do oprimido, do violado, do violentado, do escravizado e do faminto, não há qualquer sentido na vida, se não a espera pelo amanhã, pelo amanhã melhor e isso é esperança. Queremos saber o que acontecerá amanhã, queremos ver as mudanças ocorrerem e temos a esperança que cedo ou tarde ocorram, de preferência enquanto estivermos aqui para testemunhar e usufruir da melhoria que todos os dias esperamos para a nossa medíocre vida. E é apoiado nisso, unicamente na esperança, que esse último editorial do ano da Revista / Portal Dossiê etc te deseja uma excelente passagem de ano, que suas dores sejam esquecidas e superadas em breve, que cada ausência sentida reverbere em amor para dar aos que ainda podem e precisam receber, que cada desejo não atendido se transforme em sonhos futuros para alimentar a alma e que, apesar de todos os ataques que sofremos diariamente, nos sintamos ousados para continuar sonhando, esperançando e lutando por dias melhores. Desejamos a todes nossos leitores, um Feliz 2022 (na medida do possível).

  • LISTA: 5 melhores séries e minisséries de 2021

    O melhor das séries e minisséries, aproveite as férias de fim de ano e assista essas maravilhas, quase obras de arte. O mundo das séries oferece um cardápio variado pra todos os gostos, vocês com certeza gostam de algumas das séries mencionadas na lista de piores do ano e não gosta de alguma das séries que vai encontrar logo adiante, nós entendemos, existem os fatores como apelo, idade, audiência, premiações e tantos outros, fato é que o mundo das séries já não pode ser considerado mero entretenimento, mas também, ainda não podemos o chamar de arte, mas estamos quase lá, isso é claro, falando de séries, de programas com uma produção apurada, bem roteirizados, atuada, dirigida e produzida, até porque é incontável o número de coisas ruins na televisão e talvez, esse seja um dos motivos de muita gente torcer o pescoço para as séries, por isso, se você é da turma que pensa que séries são perda de tempo, que o cinema é muito melhor que a televisão, que isso e que aquilo, lhes aconselho fortemente que tire um tempo e assista as séries a seguir, não tenho a menor sombra de dúvidas que você vai mudar de ideia, já você que, assim como eu, é amante das séries, deixem nos comentários quais as favoritas de vocês, agora, sem mais delongas, segue a lista: 5. The Handmaid’s Tale (4ª temporada, 2021) O que muitos de nós esperávamos aconteceu, ou melhor, começou a acontecer. June (Eleisabeth Moss) ainda tem um longo percurso até que sua "vingança" seja concluída, mas a quarta temporada deu umas passadas bem longas e rendeu alguns dos melhores momentos da série. Moss não só brilhou em frente às câmeras, como dirigiu os dois melhores episódios e a cena final foi o ápice, bela temporada. Onde assistir: Globo Play 4. Mare of Easttown (minissérie, 2021) O draminha de uma cidadezinha, onde todo mundo acha que se conhece e um assassinato abala a comunidade, já é conhecido do público, uma reviravolta aqui, outra ali, com uma policial marrenta, tudo muito clichê, né? Pois é, parece, mas não é o caso aqui. Kate Winslet, o mundo é seu minha filha. Onde assistir: HBO Max 3. Impeachment: American Crime Story (minissérie, 2021) O que mais me impressiona é que, quando não tem as mãos de Ryan Murphy envolvido na direção/roteiro, a coisa simplesmente funciona, a história do escândalo sexual envolvendo Bill Clinton, o seu Impeachment e tantos outros casos no decorrer do seu governo fluem com tanta naturalidade que acabamos travados por conta dos inúmeros absurdos, mas nada disso se compara a atuação monstruosa de Sarah Paulson que, mais uma vez, escolheu a personagem mais grotesca possível para interpretar, funcionou, é impossível terminar qualquer episódio sem sentir absolutamente nada por ela, repulsa é a palavra, uma das melhores produções do ano. Onde assistir: 2. The White Lotus (1ª temporada, 2021) O hotel White Lotus abriga uma série de personagens em seu retiro mental, mais conhecido como férias, esses personagens são todos brancos e ricos, repleto de manias e chiliques dos mais idiotas possíveis, o curador da ideia Mike White usa tudo isso ao seu favor e o resultado é uma das melhores e mais engraçadas séries dos últimos anos, é bizarro como o ser humano pode ser idiota e inconveniente, tudo isso com episódios incrivelmente bem dirigidos e fotografados. O elenco nem parece desse mundo tamanha é a sintonia do absurdo. Onde assistir: HBO Max 1. Succession (3ª temporada, 2021) O gancho deixado no final da segunda temporada deixou muita gente aflita, se perguntando, e agora, como o patriarca da família Roy iria lidar com o caos que seu filho Kendall jogou em suas mãos, o terceiro ano da série mostra a tentativa do clã de consertar essa cag*da, e eles fazem o inimaginável para que seu império continue firme e forte, até o golpe, o soco na mente que foi o episódio final – Succession é tranquilamente a melhor série da atualidade. Continua com diálogos afiados e ágeis, o elenco é um espetáculo por si só, cada um deles tem seu momento de mostrar porque está ali, Brian Cox e Jeremy Strong chegam assustar, Kieran Culkin continua perfeito como o caçula sarcástico e Sarah Snook terminou com a bomba nas mãos. É meus amigos, é de uma obra-prima que estamos falando. Onde assistir: HBO Max

  • A implacável desidratação de Bolsonaro

    Na direção oposta, pesquisas revelam vitória cada vez mais certa de Lula em 2022 Como num processo de fórmula 1, o autódromo político brasileiro começa a montar sua estrutura com equipamentos, veículos, equipes, segurança e todos os aparatos que mostrarão ao público não só o desempenho das máquinas, mas também a habilidade em seguir regras e vencer a prova. Os roncos dos motores serão poderosos e, nessa breve alusão à política do país, tudo indica que o vencedor já saiu, precisando apenas da data já marcada, para levantar seu troféu. O outrora vencedor, aqui na figura de um presidente hoje cercado de adjetivos desnecessários de traduções, conseguiu internalizar nos eleitores os mais fortes aspectos de rejeição, desaprovação e, agora mais que nunca, uma inquietação para que o país consiga sobreviver a tantos assaltos éticos e morais que jogaram a economia num patamar quase inalcançável na escala. A preocupação está presente em todos os lares, empresas, serviços, universidades e hospitais do país, já tão assolados e fazendo esforços hercúleos para chegar à reta final nessa disputa. Não existe a intenção pública declarada que o presidente não faça parte dessa bem próxima corrida pelo poder. Ao contrário, o inconsciente popular parece revelar um interesse grande em sua presença, deixando no final a certeza de que não só perdeu, mas também desapareceu da continuidade histórica do país, ficando apenas um registro memorável do maior acidente de percurso presenciado nas últimas décadas, onde as fichas apostadas no carro vendido como mais possante foram menosprezadas e seguiram na enxurrada de corrupção que ganhou ainda mais força, bem familiar e religiosa, embora às avessas. Numa cultura tão atacada propositalmente há séculos, aqueles que abraçaram as intenções de resgaste e valorização de um povo e suas necessidades, como ocorreu no governo Lula, foram apedrejados e rotulados para dar lugar ao que hoje se vê: um desastre recheado de irresponsabilidades e abusos que atingiu as piores proporções por motivos bastante claros, óbvios e certeiros: Governo sem segurança, base e formação, despedaçado no guard rail que lhe deu um basta. “Daqui até lá ainda tem muita água para rolar” é frase bastante comum e também com alguma lógica durante os períodos que antecedem as eleições. Essa deve ser a primeira eleição em que com larga antecedência, há a certeza de que são exatamente essas águas que jogarão para bem longe aquele que gastou seus pneus em cavalos de pau e corridas pelo cercadinho, com a infelicidade de que seus fornecedores para a troca são amigos e compadres incapazes de produzir algo adequado que forneça aderência ao solo. Competições não só automobilísticas têm seus prediletos, mas a política brasileira já revela, de forma adiantada, quem é o favorito a sair da competição de uma vez por todas e, certamente o êxito dos eleitores será muito maior, por abater uma representatividade de injustiça social, de relações de compadrio, de incompetência diplomática, de anarquia econômica e, finalmente, remover do cenário alguém que urge por tratamento de pulsão pela morte. Uma atuação incrédula pela negação total a qualquer aspecto que gere saúde, trabalho, dignidade e perspectivas, agindo apenas em prol de sua prole e agregados, e continuará assim até que saia, vivendo sua dupla ambição, uma pela riqueza dos seus e outra pela destruição das massas. Um protótipo que faz lembrar um antigo general brasileiro que preferia o cheiro dos cavalos ao cheiro do povo, que hoje se materializa num ser que alcança todos os aeroportos do mundo dentro do nosso avião, sem amigos a sua espera, com bagagens sem conteúdo adequado, porém já pronto ao próximo destino: A derrota, para o bem da nação. E seguem as pesquisas.

  • Giulia Grillo, presente!

    Giulia Grillo, a ativista do Amor. Faleceu nessa terça-feira, 21, a ativista pelos direitos humanos, Giulia Grillo. Giulia Grillo é uma das mais amorosas pessoas que eu já conheci, na guerra ou na paz ela oferecia flores, abraços, carinho, conversa. Já vi Giulia debaixo de uma chuva de bombas da PM contra ciclistas e tudo que ela conseguia gritar com aquela voz doce e rouca era: “Parem de violência, há crianças aqui”. Há 5 ou 6 anos conheci Giulia, uma jovem senhora que sobre uma bicicleta buscava viver a cidade, cruzou com nossa “trupe” e nunca mais se afastou. Éramos um grupo de ciclistas sem uniforme, sem bicicletas caras, sem grandes ambições estéticas, apenas pessoas com bicicletas que se uniam para conhecer a cidade, protestar, passear, comer e beber em alguma praça ou parque por aí. Giulia, não. Giulia era mais do que isso, uma gigante com olhar humano sobre todas as coisas. Estive ao lado dela não só nesses momentos de lazer e descontração, mas em diversos atos e ações diretas, protestos lotados, com pressão, com opressão e pessoas perdendo a paciência, pessoas com os nervos até a tampa, mas Giulia, não. Giu foi a expressão maior da indignação elegante, ela lutou e peitou quantos policiais foram necessários, sem nunca desumanizar, sem nunca se esquecer da pessoa por baixo da farda e mesmo quando sofria violência, Giulia nunca quis revidar, Giulia conversava, convencia, buscava o diálogo o tempo todo. “Pedrooooo, assim não, não vai... Vem pra cá... cuidado”, quantas vezes não ouvi gritos nesse tom, seguindo dos deboches: “Calma bebezão”... Uma vez Giulia conseguiu um trabalho, um bico, que a completava, veja bem, ela, a expressão maior do Amor e da Paz, fez um trabalho para o Japan House São Paulo, uma movimentação artística em que dezenas de ciclistas pedalavam em um grande grupo por toda a cidade com uma bicicleta, distribuindo flores. Ela AMOU, fez todos os dias, postava fotos e no final ficou feliz em ganhar uma bicicleta tão boa, já que ela morava meio longe de onde os giros aconteciam. Cada pessoa do grupo ficou com uma bicicleta, porém, dias depois, Giulia foi até a Cracolândia onde foi uma brava ativista pelos direitos humanos, aliás, tamanha a humanidade que ela colocava no olhar sobre aquelas pessoas, que nem se deu conta e deixou a bicicleta encostada em um canto e foi andar, assistir às pessoas que precisavam de sua atenção, quando voltou a bicicleta tinha sido furtada. Nenhuma mágoa, nenhum ódio, nenhum arrependimento, continuou a visitar a Cracolândia até os últimos dias. Semanas depois, o grupo de whatsapp dos ciclistas fica agitado, precisavam de alguém para ir resgatar a Giu, que tinha furado o pneu ali pertinho da craco. Eu estava perto, corri para lá assustado. Meu medo;? Que Giulia perdesse outra bicicleta. Chegando lá, ela muito mais tranquila que eu, me deu um abraço e agradeceu com um sorriso enorme. Remendamos a câmara, montamos o pneu e saímos dali. “Bebezão, eu não estava com medo, só queria sair daqui pedalando, obrigada!”. Lembro do orgulho que senti quando ouvi a voz de Giulia denunciando a violência policial gratuita contra pessoas em situação de rua em um dia de chuva. Ela não tinha medo das pessoas, pelo contrário, mesmo lutando contra um câncer complicado, a dedicação dela sempre foi a terceiros. Ligava para o Padre Júlio Lancelotti, para o vereador Eduardo Suplicy e para os ativistas da Craco Resiste, até conseguir o que precisava, até desfazer uma injustiça. Aliás, filmou e denunciou inúmeras injustiças, deu ombros, ouviu e conversou com qualquer pessoa que precisasse de atenção, compartilhou tudo o que teve: Tempo, amor e pão. Giulia Grillo é uma daquelas ativistas invisíveis que não buscam protagonismo, que não querem fama, mas que movem o mundo para mudar aquilo que a indignava. Giulia era uma gigante silenciosa para o grande público, mas que todos sabiam que deveriam ouvir. Eu não tenho muito jeito para despedidas e sinceramente acho meio complicado homenagear uma ativista que, para mim, é muito do que isso, foi uma amiga de jornadas intermináveis de pedal. Até porque, Giulia não era só luta, Giulia também era paz. Para quebrar a formalidade e impedir que isso pareça um obituário, lembro de uma viagem que fizemos até a cachoeira do Jamil, na volta, faltando mais de seis horas de pedal para chegar em casa, uma fortíssima chuva se formou, mas ela recusou voltar de Kombi, “Deixa para as crianças, eu quero viver essa aventura” e assim pedalamos mais de 8 horas em estradas de terra e pedregulhos sob forte chuva e lama na canela. Foi uma das conexões mais incríveis que eu senti no pedal, foi uma das viagens mais marcantes, contamos histórias, compartilhamos sentimentos, nos conhecemos melhor e assim construímos uma história que vou contar para sempre, uma história sem fotos, porque a câmera queimou com a chuva, mas quem precisa de fotos, para lembrar do que foi gravado no coração? Esse é uma singela homenagem para a mãe, amiga, ativista e ciclista, para sempre presente, Giulia Grillo.

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