Apologia ao cuidado na Redução de Danos
A RD não busca a abstinência como algo possível/desejável, mas torna evidente que entre o “sim” e o “não” existe uma terceira via: o “como?"

“...Um dia me disseram Quem eram os donos da situação Sem querer eles me deram As chaves que abrem essa prisão...”
Somos quem podemos ser - Engenheiros do Hawaii
Usando essa metáfora de libertação pelo conhecimento na música de Engenheiros do Hawaii fica mais fácil entender o quanto o conhecimento liberta, apesar de às vezes também aprisionar (vai de cada um permitir ou não que isso aconteça), mas no sentido da música atrelado ao texto trago para a questão do autoconhecimento, conhecer a si mesmo é extremamente libertador apesar de esbarrarmos nas imposições variáveis de nossa sociedade hipócrita, moralista e repressora. Sim! Infelizmente mesmo assumindo quem somos, pagamos um preço alto por isso, (pagar por pagar que assim seja feita a nossa vontade "nénom"?!) isso é questão de auto respeito à nossa singularidade, o que não vale é seguir sendo algo que te programaram e que nada tem a ver com quem se é na verdade. Mas e o que isso tem a ver com redução de danos (RD)? TUDO!

Como bem diz título do texto, Redução de Danos é a ética do cuidado, seja ele com si própria ou para com outras pessoas. É necessário reduzir danos nas relações de um modo geral, melhorarmos nossa relação com nós mesmas, com a comida, com o trabalho, com o consumo... isso é exercício de autoconhecimento e auto amor... Entender nossos pontos fortes e enaltecê-los, mas também reconhecer nossas fragilidades e aceitar nossas imperfeições. Dessa forma entendemos a responsabilidade que temos quando permitimos que algo nos afete de alguma forma. Reduzir danos é também se desintoxicar dos padrões morais dessa sociedade doente, o que facilita perceber melhor o que é de fato importante e a que eu devo dar a atenção devida. É ter a liberdade de controlar os efeitos de algo, sem necessariamente retirar o que pode estar colaborando para um desajuste em alguma questão.
Mas para entender melhor, vamos partir do princípio, lá nas " *antrola " ou você acha que Redução de Danos foi inventada agora para os drogados seguirem fazendo seu uso “a torto e a direita” como dizem os moralistas de plantão? Em alguns contextos os drogados entram como protagonistas nessa história, (mas nem sempre, sabemos que nem tudo são buds (flores) nesse país) na verdade essa prática que surgiu no início do século XX, quando em 1926 alguns profissionais de saúde passaram a reconhecer e de certa forma sustentavam a ideia de que em alguns casos não é possível a retirada total da droga, sendo necessária uma reorganização na questão do uso que seja mais adequado ao contexto do usuário, sendo possível também a utilização de drogas substitutivas. Nesse período “os privilegiados” eram soldados que sobreviveram à base de morfina aos traumas da segunda guerra e com isso se tornaram dependentes da substância, mas como isso se deu por consequência de terem defendido o país na guerra, o Estado se viu na obrigação de manter o acesso a substância em casos de não ser possível a retirada da droga.
É importante ressaltar que esse é um tipo de tratamento e não uma recompensa pela modificação no seu contexto de uso, na verdade a RD se propõe a reduzir prejuízos biológicos, sociais e econômicos levando em consideração o respeito à liberdade individual de cada um.
Mesmo com vários pontos em favor dessa prática, inclusive apelando para o patriotismo sempre prevalente nessas sociedades. Existe ainda uma força muito maior como o moralismo que nesse ponto sempre se manteve conservador, com isso a redução de danos não conseguiu espaço, se mantendo em stand by por muitos anos. Foi quando na década de 1980 que essa estratégia de tratamento e cuidado em contexto de uso de drogas acaba se tornando mais do que necessária. Isso se deu pela iniciativa de associações de usuários de drogas através da proposta de troca de seringas para conter epidemia de hepatite B entre os usuários, assim foi sendo cada vez mais possível entender sua importância. Após isso, somente na década de 1990, período de ascensão da HIV/AIDS, a RD passa a ser considerada estratégia válida pelos serviços públicos de saúde na intenção de conter a transmissão do vírus. Daí em diante, o sistema de saúde passa a adotar também essa postura. Como toda a repercussão em torno da crescente contaminação por HIV/AIDS essa estratégia foi ganhando proporção em diversos países.

Diante de várias problemáticas em questão, a RD passa a ser vista por alguns grupos como melhor opção por levar em consideração as singularidades e o respeito às liberdades individuais, o que pode garantir uma regulação mais adequada sem a necessidade de leis repressivas. Apesar dessa estratégia em alguns momentos acabar esbarrando nos desmandos do **biopoder em contextos que buscam a abstinência, quando nesse caso dependem do olhar apurado da equipe que administra essas práticas institucionalizadas, por exemplo.
Existe também uma prática conhecida como “abordagem libertadora” que busca acolher o usuário sem a intenção de abstinência, formando assim uma rede de cuidado desde a prevenção até o tratamento ao uso nocivo de drogas, como também o amparo quanto a questões sociais e de saúde necessárias. É a partir daí que começamos a perceber campanhas como “se beber não dirija!” “É proibido fumar em locais fechados!” entre outras consideradas aceitáveis no contexto de drogas lícitas, mas e as ilícitas? Aos seus consumidores resta apenas o estigma de drogado já que não existe regulação e é por isso que a legalização de TODAS AS DROGAS é tão urgente e necessária e não só por isso (sabemos que o fim da guerra as drogas é reduzir danos sobre o povo preto, pobre e de periferia que paga tão caro por tudo isso).
É preciso entender que tudo que é feito na ilegalidade abre brechas para uma série de questões que vão além do nosso próprio entendimento, não esquecendo que muito dessa problemática, em sua maioria, vem bem antes da questão com a droga em si. Tudo isso envolve a possibilidade do usuário falar sobre suas questões, ter a liberdade de escolher se cuidar e continuar vivendo e usando drogas (caso queira e isso que isso é o melhor). A possibilidade de traçar planos sobre si e suas experiências ao invés de ser silenciado ou invisibilizado, ou, pior ainda, marginalizado, tornando legítimas essas experiências.
O movimento da redução de danos parte de questionamentos que facilitam a compreensão e o acolhimento destas demandas: “O que estas pessoas pensam, sentem e dizem em relação ao uso de drogas?”, “O que faz elas continuarem usando?”. Essas são questões que atravessam suas vivências das mais diferentes formas, mas que são ignorados nesse contexto proibicionista em que estamos inseridos, onde leis e portarias vêm de cima pra baixo, ignorando e não reconhecendo os atores principais dessa trama, colocando-os sempre numa condição de culpado ou doente, convocado sempre a falar na posição de ex-usuário ou um possível abstinente. E é nesse contexto que a RD passa a ser também considerada no debate político pela busca por garantia de direitos.
Mas como já dito anteriormente o moralismo por trás dos mandos e desmandos da nossa sociedade hétero patriarcal, que adora julgar sem olhar o próprio rabo, acusam a RD de incentivar o uso de drogas, justamente por não declarar ser uma prática contra as drogas e no meio dessa polaridade ocorre o fenômeno do “vale tudo”.
Toda essa discussão em torno do uso de drogas não pode se limitar apenas a políticas de saúde através do SUS nesse sentido da rede de cuidados, mas também pelo fato de outras questões que também atravessam o usuário em diferentes contextos. Existem ainda barreiras que precisam ser quebradas para uma melhor compreensão e discussão sobre esse assunto de uma forma integrada entre possibilidades médicas, comportamentais como também estruturais/sociais. Levando em consideração suas vivências e sua potência para se autorregular. O contrário do que vemos hoje com tanta psicologização, medicalização, institucionalização... Histórias de vida de pessoas sendo baseadas sob o olhar de uma psiquiatria excludente que visa sempre a manicomialização dos usuários de drogas, ele tendo ou não algum tipo de psicopatologia. O que parece ganhar cada vez mais força diante na conjuntura infeliz que estamos vivendo, desse desgoverno de retrocessos atrás de retrocessos, com a retomada das comunidade$ terapêutica$, onde defensor de eletroconvulsoterapia (ECT) é nomeado coordenador de saúde mental de um ministério. Se eu for listar aqui todas as barbáries desse desgoverno caberia num compêndio. Mas enfim...
A Redução de Danos possibilita encontros potentes, o que permite que ela se desenvolva e transforme todas as pessoas envolvidas nessa rede de cuidados, principalmente quando existe reciprocidade no reconhecimento das diferenças e das diferentes escolhas que cada um de nós podemos fazer em nossas vidas.
Me lembro de uma entrevista com um indígena fazendo um resgate do período de colonização que nossos povos originários foram submetidos. E que acaba trazendo a Redução de Danos como uma luta de resistência, um resgate de nossa memória ancestral que conseguiu preservar muito dessa cultura. A língua, os alimentos, rituais, o reconhecimento do outro sem desconsiderar a fé em si mesmo, (que possamos aprender com nossos povos diversos e de uma riqueza sem fim) onde se reconhece e valoriza a importância do território em que vivemos e as trocas possíveis, a urgente necessidade de diminuir as desigualdades como também as vulnerabilidades o que acaba dando mais um sentido a RD como uma esperança para todos os humanos. É como o reconhecimento da possibilidade de uma vida nova, de um olhar mais humano, mais próximo que possibilita mudanças de dentro para fora.
Posso usar a minha experiência pessoal que ocorreu de forma muito orgânica, por exemplo, com a maconha.
Já é sabido que nossa amada, mas também odiada planta sagrada possui vários benefícios terapêuticos e claro que a usamos pelo bem-estar e relaxamento que nos proporciona para aguentar essa realidade tão cruel, mas em alguns casos de fato ela pode atrapalhar e foi o que senti quando precisava de concentração e acabava embarcando em algumas viagens. Mas ao perceber que isso estava me atrapalhando em algumas questões, resolvi reduzir danos.
Há algum tempo, eu vivia cheia de criatividade (que a maconha proporciona), mas não conseguia me organizar para colocar em prática o que era preciso. Hoje eu faço. Uso quando acho necessário e digo com segurança a vocês que, para mim, é o melhor acalento depois de um dia de muito trabalho, mas não necessariamente precisa ser assim com todas as pessoas. Claro que existe quem funcione muito bem com a ganja, mas a proposta da RD é justamente essa, de você entender até onde a substância está te ajudando ou quando se torna um elefante rosa no meio da sala, é um processo lindo de autoconhecimento, auto respeito, auto responsabilidade... aconteceu assim comigo também com a comida, com a cocaína que embora eu nunca tenha tido uso nocivo, hoje uso apenas quando tenho vontade de curtir aquela onda especifica, no momento adequado, ou seja, raríssimas vezes rs. Com a comida eu fui entendendo que alguns alimentos apesar de muito saborosos não me fazia bem e eu preferi o meu bem-estar, sobre consumismo passei a achar desnecessário, sobre adoecer num trabalho que só me garantia o salário no fim do mês, busquei minha autonomia, sobre o machismo nem te conto, “sem tempo irmão” rs...
Olha que coisa linda que a RD fez na minha vida, parece até testemunho de igreja, só que nessa “religião” eu sou a deusa, uma louca, uma feiticeira...amém irmãs! Enquanto não melhorarmos nossa relação seja com o que for, seremos sempre reféns de muletas para obter alguma satisfação nessa vida.
E eu entendo que nosso país nos obriga a nos drogar, mas só lembrando de uma frase de pano de prato de uma mana que gostei muito:
“um pouco de droga e um pouco de salada, tudo é questão de equilíbrio”
...que saibamos dosar nossa felicidade que vem de fora e aproveitemos melhor a felicidade que vem de dentro. É uma possibilidade de você gerir melhor sua própria vida.
Mas, agora fazendo uma reflexão sobre a nossa realidade, será que a redução de danos é para todes?
Que ela é necessária acho que posso considerar consenso em alguns grupos, mas ela é de fato acessível? Me parece que não. Primeiro que essa estratégia como dita anteriormente nunca foi levada com a seriedade que merece pelos gestores do nosso país, ainda esbarra numa série de burocracias, leis, decretos, portarias que só servem pra gente seguir desobedecendo, já que não faz o menor sentido. Além de serem extremamente injustas e seletivas.
No contexto atual então com o desmonte dos equipamentos de atenção à saúde mental, redução nos gastos em saúde, a ascensão das comunidade$ terapêutica$ entre outros muitos retrocessos, tem também a desigualdade social que impede o acesso à informação, às possibilidades de autocuidado porque se o cara já tira ali da grana do mês que já é curta para comprar a droga (merecida), quanto que lhe sobra pra comprar uma seda de qualidade, piteira longa de vidro e o escambau?
É aquela coisa: “O que é um peido pra quem tá cagado?” a pessoa não vai gastar seu rico dinheirinho com acessórios que ainda não fazem tanto sentido para ela, já que ela só quer curtir seu beck roots na paz. Acho super válida a iniciativa dos redutores de danos da região central de São Paulo que distribuem apetrechos de RD, no fluxo da Cracolândia, mas e na quebrada como funciona? Aqui mesmo onde moro não tem nem loja para comprar seda, imagine outros “luxos”. Além de tudo, a informação não chega, o dinheiro não dá e a sociedade não colabora. Por isso já que já estamos acostumadas a desobedecer a leis injustas, que possamos juntas construir de forma coletiva as práticas e saberes que permeiam esse contexto. Entender que a relação com a droga não diz somente sobre dependência, buscando manter o foco na pessoa e não na substância, levar o cuidado para além da droga, respeitar os direitos individuais. Porque sabemos que não existe receita pronta, é um processo e por isso é importante que seja feito de forma humanizada e singular. Vamos fazer valer a máxima #acolhanãopuna
"…Don't you think I know what I'm doing Don't tell me that it's doing me wrong You're the one who's really a loser This is where I feel I belong"
"Você pensa que eu não sei o que eu estou fazendo? Não me fale que está me fazendo mal Você é um verdadeiro perdedor É aqui que considero o meu lugar..."
Snowblind - Black Sabbath
*Antrola: Gíria / regionalismo da Bahia para se referir a algo antigo, que aconteceu há muito tempo. Sinônimo de tempos do "guaraná com rolha", "do arco da velha" etc.
** Bipoder: Conceito criado pelo filósofo francês, Michel Foucault, para se referir a interferência do Estado no controle dos corpos e dos hábitos da população
Referência Bibliográfica
DELMANTO, Júlio. Camaradas caretas: Drogas e esquerda no Brasil após 1961. 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo
SOUZA, T.P.; CARVALHO, S.R. Reduzindo danos e ampliando a clínica: Desafios para a garantia do acesso universal e os confrontos com a internação compulsória. Ministério da saúde. Cadernos Humaniza SUS vol. V
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